• 108
    Ápio Patrocínio da Conceição
     Mestre Camafeu de Oxóssi 
    10/out/1915 - 26/mar/1994









    📻 Velhos Mestres

    M Camafeu de Oxóssi, 1967 e *1968
    < >
    • 01.
      Quem quiser moça bonita
      3:55
    • 02.
      Paraná
      3:38
    • 03.
      Samba do mar
      2:39
    • 04.
      Adeus Corina
      3:31
    • 05.
      Sou eu maíta
      1:50
    • 06.
      Vou dizê a meu sinhô
      1:53
    • 07.
      Babá mixorô
      2:50
    • 08.
      Moriô
      2:12
    • 09.
      Ojo matin dolaie
      1:50
    • 10.
      Afoxé loni
      2:34
    • 11.
      Alá filá lá
      2:30
    • 12.
      Adabaô no mafé
      2:08
    • 13.
      Ala la la ê
      2:12
    • *01.
      Ogum
      1:55
    • *02.
      Exu-Onã
      3:21
    • *03.
      Oxum
      3:28
    • *04.
      Oxóssi
      2:55
    • *05.
      Oxalá
      2:49
    • *06.
      Crioula pariu mulata
      2:20
    • *07.
      Bahia minha Bahia
      4:52
    • *08.
      Canto contado
      3:20
    • *09.
      Confirmação de Oxóssi
      3:33

    M Camafeu de Oxóssi, 1967 e *1968



    O ABC de M Camafeu de Oxóssi

    1915 - Nasceu no 4 de outubro na Rua Gravatá, bairro Nazaré de Salvador, filho de Faustino José do Patrocínio e Maria Firmina da Conceição.

    1945 - Conseguiu sua primeira barraca no Mercado Modelo.

    1961-1964 - Foi um dos primeiros alunos do curso de iorubá da UFBA, freqüentou aulas às têrças e quintas-feiras.

    1966 - Viajou a Dakar à I Festival Mundial da Arte Negra com M Pastinha, M Gato Preto, M João Grande, M Roberto Satanás e M Gildo Alfinete.

    1967 - Gravou seu primeiro LP Berimbaus da Bahia (escuta acima), nos 80-s relançado pelo nome Berimbau.

    1968 - Philips gravou seu segundo LP Camafeu de Oxóssi (escuta acima).

    1969 - Perdeu tudo no fogo de Mercado Modelo.

    1971 - Inaugurou, ao lado de sua esposa Toninha, um restaurante no novo Mercado Modelo.

    1976-1982 - Foi presidente do Afoxé Filhos de Gandhi.

    1994 - Faleceu no 26 de março.

    Galeria de fotos

    • M Camafeu de Oxóssi e Diaulas Riedel
      Mercado Modelo
      1961
      Foto e acervo: Zélia Gattai

    • M Camafeu de Oxóssi e Diaulas Riedel
      Mercado Modelo
      1961
      Foto e acervo: Zélia Gattai

    • Jorge Amado, M Camafeu de Oxóssi et al
      Mercado Modelo
      1961
      Foto e acervo: Zélia Gattai

    • M Camafeu de Oxóssi
      1970
      Foto e acervo: Zélia Gattai

    • Mirabeau Sampaio, ?, Jorge Amado e Camafeu de Oxossi
      Cinquenta anos de literatura
      Salvador, 1981
      Foto e acervo: Zélia Gattai

    • Mirabeau Sampaio, Rodolfo Coelho Cavalcante, Jorge Amado e Camafeu de Oxossi
      Cinquenta anos de literatura
      Salvador, 1981
      Foto e acervo: Zélia Gattai

    • Rodolfo Coelho Cavalcante, Jorge Amado e Camafeu de Oxossi
      Cinquenta anos de literatura
      Salvador, 1981
      Foto e acervo: Zélia Gattai

    • Jorge Amado e Camafeu de Oxossi
      Salvador
      Foto e acervo: Zélia Gattai

    • Jorge Amado e Camafeu de Oxossi
      Salvador
      Foto e acervo: Zélia Gattai

    • Rodolfo Coelho Cavalcante, Jorge Amado e Camafeu de Oxossi
      Salvador
      Foto e acervo: Zélia Gattai

    • Jorge Amado e Camafeu de Oxossi
      Salvador
      Foto e acervo: Zélia Gattai

    • M Camafeu de Oxóssi

    • M Camafeu de Oxóssi

    • A capa do LP de 1967

    • A capa do LP de 1968

    • A contra-capa do LP de 1968

    • M Camafeu de Oxóssi

    • M Bigodinho (berimbau),
      M Camafeu de Oxóssi (berimbau),
      M João Grande (pandeiro),
      Caribe (pandeiro)
      Academia de M Pastinha, Pelourinho

    • M Camafeu de Oxóssi

    • Jorge Amado e M Camafeu de Oxóssi

    • M Camafeu de Oxóssi

    • M Camafeu de Oxóssi

    • M Camafeu de Oxóssi

    • Bateria:
      M Gato Preto (pandeiro),
      M João Grande (pandeiro),
      M Gildo Alfinete (berimbau),
      M Roberto Satanás (berimbau)
      Jogando: M Pastinha e M Camafeu de Oxóssi
      Morro do Gato, 1966

    • Bateria:
      M Camafeu de Oxóssi (berimbau),
      M Gato Preto (berimbau),
      M Roberto Satanás (pandeiro),
      M Pastinha (pandeiro)
      Jogando: M Gildo Alfinete e M João Grande
      Mercado Modelo, 1966
      Acervo de M Gildo Alfinete

    • Bateria:
      M Gato Preto (berimbau),
      M João Grande (berimbau),
      M Camafeu de Oxóssi (pandeiro),
      M Pastinha (pandeiro)
      Jogando: M Gildo Alfinete e M Roberto Satanás
      1966
      Acervo de M Gildo Alfinete

    • Bateria:
      M Camafeu de Oxóssi (pandeiro),
      M Gildo Alfinete (pandeiro),
      M Roberto Satanás (berimbau),
      M Gato Preto (berimbau)
      Jogando: M Pastinha e M João Grande
      Morro do Gato, 1966
      Acervo de M Gildo Alfinete

    • Bateria:
      M Camafeu de Oxóssi (berimbau),
      M Gato Preto (berimbau),
      M Roberto Satanás (pandeiro),
      M Pastinha (pandeiro)
      Jogando: M Gildo Alfinete e M João Grande
      Mercado Modelo, 1966

    • Bateria:
      M Gato Preto (pandeiro),
      M João Grande (pandeiro),
      M Gildo Alfinete (berimbau),
      M Roberto Satanás (berimbau)
      Jogando: M Pastinha e M Camafeu de Oxóssi
      Morro do Gato, 1966

    • A viagem para Dakar:
      M Camafeu de Oxóssi,
      M Roberto Satanás,
      M Gildo Alfinete,
      M João Grande,
      M Gato Preto,
      M Pastinha
      1966

    • A viagem para Dakar:
      M Camafeu de Oxóssi,
      M Roberto Satanás,
      M Gildo Alfinete,
      M João Grande,
      M Gato Preto,
      M Pastinha
      1966

    • A viagem para Dakar:
      M Pastinha,
      M Roberto Satanás,
      M Gato Preto,
      M Gildo Alfinete,
      M Camafeu de Oxóssi,
      M João Grande
      1966

    • A viagem para Dakar:
      M Gato Preto,
      M João Grande,
      M Pastinha,
      M Camafeu de Oxóssi,
      M Gildo Alfinete,
      M Roberto Satanás
      1966
      Acervo de M Gildo Alfinete

    • A viagem para Dakar, bateria:
      M Gato Preto,
      M João Grande,
      M Camafeu de Oxóssi
      Agachados: M Gildo Alfinete e M Roberto Satanás
      Dakar, 1966
      Acervo de M Gildo Alfinete

    • M Gildo Alfinete e M Camafeu de Oxóssi
      Dakar, 1966
      Acervo de M Gildo Alfinete

    • M Camafeu de Oxóssi com uam jaqueta azul
      Lavagem do Bonfim, Salvador, 1964
      Acervo de Helinä Rautavaara

    • M Camafeu de Oxóssi, sua esposa Toninha e Jorge Amado
      Restaurante do Mercado Modelo

    • ?, Zélia Cattai (a esposa de Jorge Amado), Jorge Amado e M Camafeu de Oxóssi

    • Fotos de Jean Solari

    • Leia abaixo

    • Leia abaixo

    • Foto: Êle, que conseguiu enfrentar sem lágrimas o incêndio do Mercado Modêlo chora ao pensar no futuro de Jorge, o filho de criação. Não quer que o menino passe o que êle já passou.
    • Leia abaixo

    • Leia abaixo

    • Leia abaixo

    • M Camafeu
      1963/64
      Mercado Modelo
      Acervo: Helinä Rautavaara

    • M Camafeu
      Mercado Modelo
      Foto: Maureen Bisilliat
      Acervo: IMS

    • M Camafeu (estudando yoruba?)
      Foto: Maureen Bisilliat
      Acervo: IMS

    • M Camafeu segundo da direita em pé
      Foto: Maureen Bisilliat
      Acervo: IMS

    M Camafeu de Oxóssi

    O texto

    • página 2

      -

      No Itamarati, informam: êle é o maior conhecedor da Bahia. Ninguém toca berimbau no Brasil como êle, afirma Dorival Caymmi.

      Um crioulo genial, diz Jorge Amado. O réporter Maurício
      Azêdo foi procurar êsse personagem, sôbre quem se contam lendas e se espalham histórias.

      Encontrou um homem comum, um baiano de verdade.

      CAMAFEU DE OXÓSSI
      Revista Realidade
      janeiro 1970

      Do fundo do corredor vem o alarido de vozes femininas. As meninas-môças de um ginásio público festejam o fim do ano letivo. Sob a placa do bar Ponto Certo, a lourinha de cabelos curtos puxa uma música. De repente, cessam os gritos e os risos, o côro engrossa, alguém faz batucada num pedaço de madeira:

      „Felicidade, / Passei no vestibular, / Mas a faculdade / É particular, / Particular, / Ela é particular…“

      - Cadê Camafeu de Oxóssi?

      O gordo Valdemar Bôca-do-Mundo, assim chamado por não ter papas na língua, abandona por alguns instantes sua barraca, aponta para o fundo do corredor e diz com segurança e riso moleque:

      - Vale duas garrafas de cerveja que êle está naquela folia.

      Quem entra não vê o grupo, ouve apenas o canto, que se eleva afinado sôbre as fileiras de pequenas lojas, cada uma com um pouco mais de 1 metro de profundidade por 2 de largura. Como que por milagre, em cada boxe se comprime uma infinidade de artigos: berimbaus e atabaques, colares e pulseiras de todos os tipos e côres, velhas e desbotadas imagens de santos, cestas e bôlsas e chapéus de fibras, balangandãs de prata e de lata barata, figuras de ferro e de barro, apetrechos para os ritos do candomblé, longos terços de contas de madeira, bonecas vestidas de baiana, mil miudezas, que se amontoam e se equilibram pelos balcões, pelas prateleiras, pelas paredes, pelas ripas de madeira cheias de ganchos. Tôda a riqueza do folclore, da religião e dos costumes do povo da Bahia está aqui neste pequeno e abafado território: o Mercado Popular de Salvador, sucessor do sempre lembrado Mercado Modêlo, que o fogo devorou no ano passado.

      - Camafeu? Deve estar lá nos fundos.

      Na última fileira de boxes, onde se agitam as colegiais, ficam os bares e seus encantos: a pinga famosa de Santo Amaro, as batidas de pitanga, maracujá, limão e côco, as lambretas – um marisco para ser comido com môlho especial, um pouco apimentado, que „esquenta por dentro“.

      É mesmo lá do fundo que vem Camafeu de Oxóssi, o rosto e os braços negros contrastando com a roupa muito branca: calça e blusão de linho irrepreensivelmente engomados e passados. No bôlso do blusão, dois companheiros inseparáveis: o maço de cigarros de filtro e a caneta esferográfica, para anotar recados, fazer contas. Desta vez não está de chinelos, como de hábito, e sim de sapatos. Aninha, morena bem queimada, mocinha casadoira, surpreende-se com tanta elegância:

      - Seu Camafeu, o senhor está tão grã-fino!

      O negro sorri com o elogio inesperado, inocente. Tem 54 anos, Aninha só dezessete, podia até ser sua neta.

      - Pois é, minha filha. Hoje fui à Igreja do Senhor do Bonfim ver meu São Jorge, guerreiro de batalha.

      A seu lado está um casal de professôres de São Paulo, com os quais percorreu os estreitos corredores do Mercado, explicando-lhes o significado das coisas que saltam das barracas, atravancam a passagem.

      Camafeu de Oxóssi leva os visitantes até o boxe número 7, sua casa de negócios, consagrada a seu protetor: Barraca São Jorge. O casal veio atraído por sua fama, que se espalhou pela Bahia e chegou ao sul nas reportagens de jornais e revistas, nos comentários dos turistas, nas lembranças dos muitos amigos de Jorge Amado. Camafeu de Oxóssi: o rei do berimbau, um dos grandes compositores da Bahia, o mestre da capoeira, o senhor dos mistérios do candomblé, o homem que conversa em ioruba, o idioma nagô, com seus irmãos da África.

      Naquele instante, diante do casal de professôres está outro Camafeu, o pequeno comerciante que não sabe aproveitar a fama em benefício de seus negócios e que, nos momentos de cisma, desaba num misto de orgulho e desalento:

    • +

      página 3

      Lendas: êle falou com a rainha, tomou batida com o príncipe

      - Sou milionário de fama, mas pobre monetàriamente.

      Culpa dêle mesmo, diz Seu Nenen, dono de outra barraca. Seu Nenen, pai de treze filhos, não quer falar de ninguém, não, mas Camafeu não sabe aproveitar a oportunidade que Deus lhe deu.

      - Se êle quisesse, podia concentrar 65 por cento de todo o movimento do Mercado. Com tôda essa fama…

      Seu Nenen balança a cabeça, com um muxôxo:

      - Ah, se fôsse comigo…

      O Mercado: uma festa

      A fama de Camafeu de Oxóssi cresceu com a do antigo Mercado Modêlo, do qual só resta um monte de ferros retorcidos, única coisa que o fogo poupou. O Mercado, fundado em 1907, tinha posição privilegiada. Ao fundo, o Elevador Lacerda, que liga a Cidade Baixa à Cidade Alta e por onde passa quase todo o povo de Salvador. Em frente, o cais de saveiros, que aos sábados se transforma num formigueiro. Junto ao cais fervilha o comércio de rua: em cestas, barracas improvisadas ou mesmo no chão, sôbre plásticos ou papel, há galinhas vivas e abatidas, porcos, patos e perus; caju, manga, abacaxi, o jambo tão raro no sul; peixe, lagosta, siri; o encanto da cozinha baiana. Dos saveiros, com uma mão apoiada na amurada do cais, homens queimados pelo sol oferecem a farinha de copioba fresca; chegada agorinha dos moinhos do interior.

      - Oitocentos o quilo, freguês! Leva quantos quilos?

      O Mercado Modêlo – visita obrigatória de quantas personalidades passaram pela Bahia – tinha fama internacional, e para isso certamente contribuiu Camafeu de Oxóssi. Êle e outro barraqueiro, João Rodrigues, iniciaram o comércio de artigos regionais, que fêz do Mercado a própria sintese das coisas da Bahia. Não havia turista que deixasse de procurá-lo, nem de exaltar o seu estranho fascínio, depois de visitá-lo. E ninguém de Salvador deixava de ir lá pelo menos uma vez por semana. Era ponto obrigatório dos boêmios, da intelectualidade, do pessoal do comércio, da gente comum do povo, todos reunidos para o papo sem pressa, a batida de limão com lambreta, a roda de samba.

      - Quando a gente queria encontrar uma pessoa – diz Nilda Spencer, professôra da Escola de Teatro da Universidade da Bahia –, era só ir no sábado ao Mercado Modêlo: estava todo mundo lá.

      E o Mercado prosperava. Não era raro o dia em que uma barraca vendia mais de 1 milhão de cruzeiros antigos, ou quase 2 milhões. Um pequeno boxe valia uma fortuna: houve gente que recebeu oferta de 30 milhões antigos de luvas, mas não vendeu.

      - Lá, o sujeito entrava nu, saía vestido e comido – diz o barraqueiro Naim, 43 anos de vida, 43 de Mercado Modêlo.

      Camafeu de Oxóssi tinha quatro boxes, e dos mais procurados. Principalmente por turistas, visitantes importantes – professôres, embaixadores, intelectuais – levados por Jorge Amado e o pintor Carybé. Êste dera um charme especial à barraca de Camafeu, ao pintar motivos baianos em nove placas de eucatex dos boxes, num dia em que foi procurar o amigo e não o encontrou. Camafeu tornara-se uma espécie de imagem em carne e osso do folclore da Bahia. O homem do berimbau, do samba de roda, do candomblé – o baiano mais típico.

      - Um crioulo genial – dizem todos.

      Um mundo de lenda se acaba

      A visita da Rainha Elizabeth da Inglaterra ao Mercado Modêlo adensou a lenta em tôrno de Camafeu de Oxóssi. Elizabeth fêz uma visita de doze minutos, recebeu de presente dos comerciantes um porta-jóias de jacarandá e uma penca de balangandãs com onze peças típicas da Bahia: 2,260 kg de prata. Enquanto a comitiva real percorria o Mercado, onde atravessou um longo tapête de sisal recoberto de flôres, Camafeu tocava berimbau, em homenagem aos visitantes.

      Os que não viram a cerimônia tiveram notícia pelas informações que corriam de bôca em bôca:

      - Camafeu entregou o presente à rainha.

      - Camafeu deu um berimbau ao Príncipe Philip.

      - O príncipe tomou batida com lambreta. Foi Camafeu de Oxóssi quem ofereceu.

      - Camafeu foi quem organizou tudo.

      Por trás da lenda, a verdade histórica. Dela é modesto guardião Seu Naim. Foi êle quem organizou a homenagem à rainha, correu lista para o presente, quando soube do interêsse dos visitantes em ir ao Mercado, onde o príncipe já havia estado, numa de suas visitas anteriores ao Brasil. E ninguém do Mercado entregou nada à rainha, porque o protocolo real não permite: o presente foi passado às mãos do governador, que o entregou a Elizabeth. Deram um berimbau ao príncipe? Sim, puseram um em suas mãos, e êle logo passou adiante, assim que viu um de seus súditos de mãos abanando. O príncipe tomou batida? Não se sabe. O que se sabe é que quem conta um conto aumenta um ponto.

      Êsse mundo fantástico de Camafeu de Oxóssi desabou de repente. O Mercado estava há muito condenado, como obstáculo ao plano de urbanização de Salvador, cidade que rasga avenidas e se renova, procurando conciliar tradição e progresso. Um acidente abreviou seu fim: na madrugada de 1.° de agôsto passado [1969], o fogo começou não se sabe como („em quatro pontos diferentes“, jura até hoje muita gente) e em minutos devourou tudo.

      Camafeu ainda estava em casa quando recebeu a notícia, dada por seu amigo Othello Tornin, advogado, professor e jornalista. Othello, homem de seus cinqüenta anos, é um dos poucos que sabem a origem exata do apelido do amigo: o filme em série Camafeu Amarelo, exibido aí pela década de 30. O herói do filme usava camafeu – uma espécie de jóia – e era tão arisco, que logo viram nêle a personificação do negro Ápio Patrocínio da Conceição, que ao apelido acrescentou o „de Oxóssi“, em homenagem ao São Jorge seu protetor.

      Era cedo, Camafeu mal despertava, no dia do incêndio. Othello Tornin estava transtornado, mas Camafeu supôs que era um nada, coisa pouca, sem suspeitar que seria „aquela catástrofe“, como diz hoje. Imperturbável, fêz uma única pergunta:

      - Dá tempo de tomar meu banho?

      Chorar? Só êle não pôde

      Tôda a Bahia chorou o fim do Mercado Modêlo, menos Camafeu de Oxóssi. Bem que êle quis chorar, ao ver só destroços de tudo, a fumaça ainda saindo das coisas enegrecidas, das coisas tão queridas. Mas não tinha êsse direito, êle, o mais alegre do Mercado: os amigos, os negociantes, a gente que freqüentava o Mercado, todos esperavam dêle uma palavra de confôrto. Quase ninguém tinha segura, muitos ficaram sem nada. Camafeu teve apenas uma frase, antes de consolar os mais abatidos, homens duros que choravam como crianças:

      - Queimou, tá queimado. Oxóssi vai me dar tudo de nôvo. Também para Camafeu, o Mercado significava tudo, a razão de viver. Só aquelas placas pintadas por Carybé valiam milhões. E não só por isso: a barraca sepultava um passado difícil, de dias incertos. Antes de montá-la, em 45, Camafeu de Oxóssi fêz de tudo: foi engraxate e camelô, embarcadiço e estivador, mecânico de máquinas domésticas e bancador de jôgo em quermesses, vendedor de lança-perfumes e calafate naval.

      Com os árabes do Pelourinho, o bairro mais antigo de Salvador, aprendeu as artes do comércio. Bem cedo teve de se lançar à aventura da vida. O pai, mestre-pedreiro, morreu quando êle tinha sete anos; para a mulher, baiana que vendia quitutes e doces com um tabuleiro, só deixou o encargo de criar a filharada: dezesseis crianças. Camafeu começou a ajudar o sustento da casa ainda de calças curtas: entregava carne e banana, para ganhar 1 500 réis por semana. Depois, foi calafate naval: trabalhava o dia todo e, após limpar as ferramentas, ainda tinha de apanhar lenha e levá-la à casa

    • +

      página 5

      Glórias: Jorge Amado e Caymmi dizem que êle é o maior no berimbau

      do mestre, para ganhar 5 mil réis por semana. Para êle, calafetar embarcações é a pior profissão do mundo.

      - Nunca vi um calafate naval bem de vida. E conheci muitos: Mestre Virgílio, Mestre Isaías, Mestre Ovídio, Mestre Gororó. Morreu tudo pobre. Eu sei o que é isso. Meu mestre tinha uma lei: quando errava, porrada.

      E nem só do mestre levava cascudos. Atarantada com o ganha-pão em seu tabuleiro, sem poder olhar os dezesseis filhos, a negra baiana prevenia os vizinhos: „Se encontrar êsse menino fazendo arrelia, poder bater“. Garôto, Camafeu apanhava sem saber de quem. Mas a lição lhe valeu: foi sempre atirado, desde menino se enturmava no Pelourinho e no Maciel para ir brigar com outros moleques no Tororó; era respeitado até pelos temíveis capitães-de-areia, os pivetes largados no mundo. Rapazinho, conheceu as rodas de malandragem. Não era malandro, mas sabia defender-se, jogando a capoeira ou empregando os punhos: foi lutador de boxe, amador.

      - Ê, eu encontrava tempo para tudo.

      Curtido pelo sofrimento, Camafeu não chorou diante do Mercado destruído. Agüentou firme, consolou os inconsoláveis. Depois, sòzinho com seu amigo Othello Tornin, negro Camafeu cruzou os braços sôbre uma mesa do restaurante Continental, apoiou a cabeça e chorou como uma criança que perde o seu brinquedo.

      À noite, junto ao cais, de costas para as cinzas ainda quentes do Mercado Modêlo, negro Camafeu cantou horas e horas. Na sua voz gutural, os versos do samba de roda enchiam a noite da Bahia.

      „Eu dormi rico,
      Amanheci pobre…“

      A angústia arde como pimenta

      Agora é a melancolia do nôvo mercado, o Popular, instalado num antido depósito de sucata adaptado às pressas para receber os quase duzentos barraqueiros. O ponto está distante do centro, ninguém o conhece, o Mercado já não tem aquela alegria da Praça Cairu. As vendas caíram.

      - Hum… Aqui? O movimento não chega nem a 10 por cento do que era lá no Mercado Modêlo – diz Seu Nenen, um dos desesperançados.

      Durante vinte dias, Camafeu ficou parado, sem dinheiro. O que o salvou foi a ajuda de Jorge Amado e Carybé. Êle pôde então retomar os negócios: comprou mercadorias, espalhou-as pela calçada da Praça da Alfândega. Quase trinta anos depois, negro Camafeu voltava a ser camelô. Êle e outros, como Seu Nenen.

      - Com aquela filharada tôda, posso parar? Posso parar?

      A princípio houve quem sonhasse em voltar à Praça Cairu. Era possível reconstruir o Mercado no mesmo lugar. Muitos esperaram um gesto heróico de Camafeu de Oxóssi, queriam dêle o magnetismo de uma liderança. O jornalista Vasconcelos Maia, ex-deputado estadual, lamenta que o nôvo mercado esteja tão distante. Magro, mais cabelos brancos do que devia ter com os seus 46 anos („são os sinais de muitas batalhas“), Vasconcelos acha que logo após o incêndio havia clima psicológico – tanta era a comoção popular – para a reconstrução do Mercado ali mesmo. O próprio Estado ganharia com isso: o Mercado Modêlo era um ponto de atração turística, uma fonte de renda para a Bahia.

      - Se Camafeu tivesse feito um apêlo ao prefeito, garanto que o Mercado não tinha saído daqui. E não precisava muito esfôrço: as paredes laterais ficaram de pé.

      Camafeu não quis ou não pôde ser um líder? Tentar fazer alguma coisa êle tentou, lá no antigo Mercado Modêlo. Pensou em fundar uma associação de comerciantes, chegou a falar com alguns. Quase todos fizeram corpo mole. Êle desistiu:

      - Cada um por si, Deus por todos.

      Valdemar Bôca-do-Mundo, cinqüentão mas cheio de energia, não se conforma com essa pasmaceira, o dia todo à espera da freguesia que não vem.

      - Quer saber de uma coisa, Camafa? Aqui 98 por cento são uns filhos… Ninguém quer nada. Nós podíamos reunir o pessoal, negociantes, mulher, filhos, o diabo, e ir lá no prefeito expor a situação, pedir uma definição. Mas ninguém quer nada! Sabe por quê?

      Porque ali no Mercado, diz Valdemar Bôca-do-Mundo, „tem muita gente de barriga cheia“. E começa a contar nos dedos os exemplos. Houve um que perdeu 540 contos num dia, todos sabem que ali se joga dominó a 10 contos a batida. Outro dia, chegaram três ônibus cheios de turistas, e nenhum barraqueiro quis tirar seu carro para que os ônibus pudessem estacionar. Parecia até que ninguém precisava de fregueses. Do ataque, Valdemar Bôca-do-Mundo passa às coisas práticas:

      - Digamos que a nova obra custe 1 bilhão. Nós somos uns cem. Quem é aqui que não pode entrar com 10 milhões nesse rateio?

      Negro Camafeu está no „escritório“, um bar junto ao Mercado, tomando cerveja. Ouve Bôca-do-Mundo, fica sorrindo, não diz nem sim nem não. Dez mil cruzeiros novos…

      Quem sabe da situação de Camafeu é sua mulher, Dona Toninha, morena bonita, dentes tão brancos que parecem pérolas, uns vinte anos mais nova que êle. Depois do incêndio, os credores dilataram os prazos, mas agora os títulos estão vencendo. De noite, Camafeu fala durante o sono, se levanta, está sempre inquieto. Dona Toninha sabe a razão:

      - A preocupação com as contas a pagar arde como pimenta.

      Quem fala ioruba na Bahia?

      Além da Barraca São Jorge, Camafeu possui outra. Lá está uma inscrição em ioruba, as letras de imprensa maiúsculas, de traço certo, bem desenhadas: „Ílè qdará ní-pwpq bábà Miòsossi qbá Kétw“. Êle traduz os dizeres: „Uma casa muito boa de meu pai Oxóssi, rei da nação Ketu“.

      Camafeu fêz o curso de ioruba promovido pelo Centro de Estudos Afro-Orientais da Universidade da Bahia, que contratou para êsse fim um professor nigeriano, Benese Lasebikan de Tundê. Durante quatro anos, de 1961 a 1964, Camafeu freqüentou aulas às têrças e quintas-feiras; no final do curso recebeu um diploma, consumido no incêndio do Mercado Modêlo.

      - A língua é tonal, eu tinha bom ouvido, foi fácil aprender – diz Camafeu.

      O etnólogo Waldeloir Rêgo, autor de um erudito ensaio sôbre capoeira (Capoeira Angola, Editôra Itapoã, Salvador, 1968), conta que também se matriculou nesse curso, mas desistiu nas primeiras aulas, por duvidar da capacidade do professor. Acha que nada perdeu, até economizou tempo. Waldeloir é um mulato claro, alto e elegante. Tem 37 anos, mas todos lhe dão 27, no máximo. Segundo conta Jorge Amado, é apresentado às pessoas de fora assim:

      - Êste rapaz é quem mais entende de candomblé aqui na Bahia.

      Waldeloir diz que há muita confusão no emprêgo do ioruba nos ritos baianos:

      - Aqui, na Bahia, ninguém, absolutamente ninguém, fala ioruba corrente. Quando muito, o pessoal sabe apenas orikis, ou seja, saudações, necessàriamente breves.

      Mas Camafeu diz que o aprendizado do ioruba naquele curso lhe foi de grande valia no I Festival Internacional de Artes Negras, realizado em Dacar, Senegal, em 1966, com participação de 33 países. Êle estava com o grupo baiano da delegação brasileira, ao lado da mãe-de-santo Olga de Ala-Ketu e de mestres da capoeira, como Pastinha, Gato e João Grande, entre outros. Graças a seus conhecimentos de ioruba, pôde conversar com a delegação nigeriana. E mais: as músicas e os toques que apresentou, com o seu grupo de capoeira, falaram mais à sensibilidade dos africanos que os sambas cantados por Ataulfo Alves e Elizeth Cardoso, por exemplo, que também integravam a delegação.

      - O Ataulfo Alves, que depois veio propor que gravássemos um disco juntos, músicas dêle num lado, minhas no outro, só agradou quando cantou seu batuque Pai Joaquim d’Angola. Essa os crioulos de lá entendiam.

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      Camafeu toca berimbau, pandeiro, agogô (instrumento de ferro com duas campânulas de sons diferentes, em que se bate com uma baquêta também de ferro), atabaque, reco-reco, prato, colher, caixa de fósforos.

      - Com um berimbau nas mãos, ninguém supera Camafeu de Oxóssi – diz o compositor Dorival Caymmi.

      - O maior tocador de berimbau da Bahia é Mestre Gato – diz o estudioso Waldeloir Rêgo.

      Nem deus, nem gênio

      Camafeu de Oxóssi viveu o seu maior momento como compositor e cantor no Festival de Artes Negras de Dacar. Depois das primeiras apresentações, foi convidado a dar um show extra, para Olga de Ala-Ketu dançar. Numa das exibições, no Estádio da Amizade, foi ouvido e aplaudido por 10 mil pessoas.

      Como artista, porém, teve mais amarguras do que glórias. Pelo primeiro disco, gravado em 1964 na Continental, nada recebeu. Pior ainda: outra gravadora, a Musidisc, reeditou a mesma matriz, não lhe pediu autorização nem lhe pagou um centavo. No segundo LP, editado pela Philips, Camafeu foi mais feliz: recebeu 130 cruzeiros novos. Várias vêzes mostrou à Continental seu interêsse em receber alguma coisa, porque „a situação não está dando para entender“. Diante de sua insistência, mandatam-lhe um recado de São Paulo:

      - O melhor é êle vir aqui discutir isso pessoalmente.

      A qualidade artística dos discos também não satisfez Camafeu. Numa das gravações, feita „na raça“, como êle diz, os técnicos chegaram a Salvador na quinta-feira, gravaram na sexta e partiram no sábado.

      - Está ruim, meu irmão – advertia êle.

      - Não, Seu Camafeu, está muito bom.

      - Olha, o côro está fraco, podemos caprichar mais.

      - Não, Seu Camafeu. Pode deixar que vai ficar ótimo.

      No segundo LP (Philips 632916-L, 1968), Camafeu gravou dez faixas, com três músicas de sua autoria e sete de domínio público: cantos de candomblé, sambas de roda, acompanhados de berimbau, atabaque e côro. O valor do disco, portanto, está não tanto nas composições de Camafeu, mas sobretudo no fato de êle e seus companheiros terem recolhido músicas do povo da Bahia.

      Em sua admiração incondicional por Camafeu, o Professor Othello Tornin superavalia os dotes de compositor do amigo. Camafeu improvisa versos para brincar com os companheiros do Mercado, o Professor Othello logo se apressa em sugerir-lhe que anote as letras, para que não se percam êsses frutos da inspiração repentina. Na verdade, Camafeu quer apenas divertir-se.

      Quem exige mais de Camafeu, no fundo, espera um milagre. Porque êle não teve outra escola senão a vida: fêz apenas o primeiro ano primário na Escola de Mestres Artífices, um colégio público. Para o segundo ano, não encontrou vaga: quando a mãe dispôs de um tempinho para cuidar da escola do garôto, em sua faina de doceira, já se havia esgotado o prazo para as matrículas. E para a família, no fim de contas,

      Foto: Berimbaus, atabaques, imagens do santo, balangandãs, rêdes: A síntese da Bahia em sua barraca, uma [..] de Camafeu, que acabou fazendo a fama internacional no Mercado Modêlo.
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      Entre lendas e glórias, Camafeu não dorme: dívidas

      era melhor que o pequeno Ápio entregasse carne e banana, ganhando algum dinheirinho, em vez de ir à escola.

      Nessa mesma escola estuda agora o filho de criação de Camafeu. Chico, um moreno de quinze anos, filho de seu compadre Chico da Gameleira, como Camafeu se refere a êle. Está no terceiro ano ginasial. O pai de criação faz gôsto que êle prossiga os estudos e chora ao pensar no futuro do menino:

      - Não quero que êle passe o que eu passei.

      Esta rotina: o desespêro

      Manhã de sábado, Camafeu de Oxóssi está todo de branco. Hoje tem romaria à Igreja do Bonfim. A gente de seu terreiro de candomblé, o Axé Opô Afonjá, um dos mais famosos da cidade, vai fazer preces. É um milagre da mistura religiosa desta fascinante Bahia: o período de festas de seita africana se encerra com orações num templo católico.

      Na preocupação de abrir primeiro a barraca, deixar Chico do Chico da Gameleira cuidando dos negócios, Camafeu de Oxóssi atrasou-se, na igreja não encontrou mais ninguém. Mas êle vai ao Axé, num bairro afastado, apresenta desculpas à ialorixá, Mãe Ondina, uma negra gorda, olhos bem grandes no rosto conservado, porte senhorial porém meigo em sua cadeira de mãe-de-santo. Camafeu também não pôde ir, dois dias antes, à oferenda a Iemanjá, nas águas da baía de Todos os Santos. Êle é obá de Xangô, pôsto de honra no culto,

      Um homem sem ambição, quer tentar esquecer os seus problemas em alto-mar, navegando no Oxóssi Guerreiro, seu velho barco a motor.

      mas relaxou em seus deveres. „Mãezinha“, como a tratam, é indulgente: conhece bem Camafeu, sabe que êle é assim mesmo, um pouco largado. Mas ela quer consultá-lo sôbre um problema do terreiro.

      - São Jerônimo vai reencarnar. Você conhece alguém de confiança para fazer o trabalho?

      Mãezinha quer dizer que a imagem de São Jerônimo está maltratada pelo tempo, precisa ser reformada. Camafeu promete cuidar disso.

      - Conheço, sim. É o Aluísio, lá do Pelourinho. Vou falar com êle.

      Camafeu tinha outros motivos para se atrasar. Quando se preparava para deixar o Mercado, tinha explodido uma discussão sôbre o tema de sempre: a pasmaceira dos negócios. Seu Barroso, dono de barraca vizinha à sua, fizera até comício:

      - Não falo por mim, não. Depois do incêndio montei negócio lá fora, não preciso disto aqui. Com minhas duas barracas, quatro empregados para pagar, a féria de uma semana inteira é isto: 40 cruzeiros novos. E os que dependem disso aqui pra viver?

      - De volta do Axé, Camafeu encontra a mesma exasperação. Agora, quem esbraveja é Valdomiro, homem alto, gordo, um gigante, baiano de sangue árabe. Êle recrimina a passividade dos barraqueiros, diz que vai sòzinho ao prefeito „dizer poucas e boas“ sôbre o problema. Está vermelho, arrasta pela mão o filho pequeno.

      - Sessenta e sete cruzeiros novos numa semana! Alguém pode viver com uma féria assim? E eu, que tenho dezessete bôcas para dar de comer?

      Camafeu chega em silêncio, ouve tudo junto à sua barraca. E indaga de Chico do Chico da Gameleira quanto foi a féria durante as quatro horas em que estêve fora. O menino estica duas notas:

      - Dois cruzeiros.

      Quem conhece Camafeu de Oxóssi?

      O cineasta brasileiro Rui Polanah queria fazer um filme sôbre a Bahia. Levantou informações, percorreu fontes, bateu no Itamarati, querendo saber que pessoas devia procurar em Salvador. Na Divição Cultural deram-lhe um conselho:

      - Procure Camafeu de Oxóssi.

      Camá, Camafa, Camafeu, Camafeu de Oxóssi: um homem vítima de um equívoco, transformando em mito, êle que só pensa em sobreviver à adversidade que enfrenta como homem comum. Um homem comum que muitos exaltaram e que poucos conhecem. Nem mesmo Seu Naim, que „nasceu no Mercado“ e que sabe tudo o que acontece ali. O Seu Naim que diz isto:

      - Nunca vi Camafeu chorar.

      O verdadeiro Camafeu de Oxóssi só quem conhece é Dona Toninha, a môça que êle buscou na cidadezinha de São Gonçalo dos Campos, para fazê-la espôsa, amiga e companheira. Ela é quem sabe da vontade que Camafeu tem de fazer umas reformas na casa, comprada com sacrifício quando ainda existia o antigo Mercado. De suas insônias, o vulto dos credores assombrando as suas noites. De sua fuga no braco a motor Oxóssi Guerreiro, com o qual se põe ao mar para se afastar de seus problemas. De seu orgulho, da altivez com que recusa recorrer a amigos fraternos e desprendidos como Jorge Amado e Carybé.

      Ela é quem sabe de sua falta de ambição, do fatalismo com que encara a vida, desde o funeral do Mercado Modêlo. Do mêdo que êle tem de morrer de repente, depois de ver, um a um, a mãe e todos os irmãos morrerem. Ela é quem sabe do conformismo de Ápio Patrocínio da Conceição, o homem comum que habita Camafeu de Oxóssi, milionário só de fama.

      - Não tenho fantasia, Toinha. Sou realista, faço o que deve ser.

      - Você é muito resignado, Ápio. Nós temos de enfrentar as coisas.

      Domingo de sol, lá vai em seu barco o negro Camafeu de Oxóssi, guerreiro de batalha, cansado de guerras.

      FIM



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