•  «CAPOEIRA MATA UM!» 
    Revista O Cruzeiro (Rio de Janeiro)
    10 de janeiro de 1948

    Texto de Claudio Tavares, fotos de Pierre Verger.

    Em destaque a roda de M Juvenal, aluno do saudoso M Samuel Querido de Deus, e uma outra com a participação de alunos dele: Reginaldo, João Evangelista e Antônio.

    Ao fundo de um grupo de fotos fica o antigo edifício da 3º Alfândega de Salvador, para onde o Mercado Modêlo foi transferido em 1971 após de incendio do prédio anterior em 1969.

    Além disso descreve diferentes golpes e movimentos de capoeira da época.

    As fotos foram tiradas por Verger em 1947 (veja a fonte)

    As imagens

    • NA RODA DA MANDINGA

      Os assistentes dão palpites, torcem e batem palmas em côro

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      [Legendas de fotos:

      O Berimbau – a chama rítmica da capoeira

      MENÇÃO DE SAÍDA – Vai começar a luta sem trégua.

      SAÍDA PARA BALÃO – Reginaldo, à direita, chama Antônio, para um pulo por cima do corpo – isto é que se chama „balão“. A assistência está atenta...

      CABEÇADA SÔLTA E SAÍDA DE JOELHO – O angoleiro Reginaldo fêz gesto de dar a cabeçada no peito de Antônio, que espera o joelho. Reginaldo espera o golpe.]

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      [Legendas de fotos:

      MEIA LUA FECHADA – Reginaldo aplica um „meia-lua fechada“ ao peito de Antônio que já espera o golpe, iniciando sua defesa, para a respectiva saída.

      MEIA LUA ABERTA – À „meia-lua aberta“, arrojada por Antônio, seu adversário responde com uma cabeçada sôlta. Notar os braços de Reginaldo, em defesa.

      MEIA LUA ALTA NO JÔGO NO CHÃO – Os capoeiristas lutam alto. Reginaldo salta como uma onça em „meia-lua alta“ sôbre Antônio que cai de cabeçada.

      PULO DE CHAPA – O angoleiro Evangelista (de costas) sai preparado com uma cabeçada sôlta e Reginaldo responde prontamente com um „pulo de chapa“.]

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      [Legendas de fotos:

      SAÍDA NA JUNTA – O angoleiro Reginaldo dá um golpe ofensivo para o adversário que agora é João Evangelista, que se defende como pode „caindo na junta“.

      CHIBATA – Saindo do pé do berimbau, Evangelista entra armado com uma „chibata“ em direção ao rosto de Reginaldo que se defende eficientemente de cotovelo.

      RABO DE ARRAIA ALTO – Reginaldo (de costas) aplica no outro angoleiro um „rabo de arraia alto“ e Evangelista procura sair com um contra-golpe.

      OUTRO RABO DE ARRAIA – Reginaldo responde com um „rabo de arraia“ a Evangelista que se defende no chão, com o braço, sua única chance no momento.

      JUVENAL HERMENEGILDO DA CRUZ Um verdadeiro „mestre“ da Angola.]

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    • CAPOEIRA MATA UM!“ (Continuação)

      [Legendas de fotos:

      Mestre Juvenal ensinando ao discípulo uma defesa, contra-ataque de adversário com faca.

      Agora o discípulo usando a navalha contra rei de Angola se defende eficientemente.

      Tremendo golpe de defesa aplica o mestre Juvenal em seu aluno que investira de „chibata“.

      Entrando no chão com uma cabeçada com respectiva defesa feita com auxílio do joelho.

      Outro „rabo de arraia“ espectacular. O antagonista faz sua defesa aparando a perna.

      Uma violenta „chibata“ que é defendida por mestre Juvenal sem perder o equilíbrio.

      O aluno do angoleiro mestre „sai de junta“ para a defesa, pois o mestre Juvenal não sendo de brincadeira entra com uma „bênção“ em seu rosto.

      Entrando no chão com uma cabeçada, investe o discípulo galhardamente no mestre Juvenal que imediatamente tranca o golpe com o joelho esquerdo.]

    • OS BERIMBAUS VIBRAM...

      Os angoleiros seguem a luta com seus berimbaus plangentes.

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    O Cruzeiro 10/jan/1948


    O local da roda (1947)



    O texto

    • página 2

      -

      „CAPOEIRA MATA UM!“
      Revista O Cruzeiro
      10/jan/1948

      Texto de CLÁUDIO TUIUTI TAVARES * Fotos de PIERRE VERGER

      CIDADE DO SALVADOR – Quando revelo a Juvenal Hermenegildo da Cruz minha vontade de escrever uma reportagem sôbre a capoeira, destacando a sua figura de mestre da Angola, o homem atlético e maneiroso diz abertamente:

      – „Pois, não! Que rei sou eu na Bahia, mestre da capoeira!?“

      Para mim, as palavras de Juvenal, a partir daquele momento, significaram uma varinha de condão. Palavras mágicas que me abriram o pano de bôca do reinado da capoeira. Ali estava o famoso substituto de Samuel Querido-de-Deus, o pescador capoeirista que tem um rosário de famas e histórias, cujo ABC é interminável. Não existem letras suficientes nesta Bahia para contar a valentia e a agilidade da pantera dêsse homem do mar, tão legendário e tão terrívelmente humano.

      – „Mestre Samuel era uma onça! Querido-de-Deus não perdia parada!“

      Afirma-me Juvenal, que conta, em poucas palavras, como chegou a ser mestre de capoeira:

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      página 3

      CAPOEIRA MATA UM!“ (Continuação)

      – „Este título me foi dado por Samuel Querido-de-Deus. Samuel gostava das minhas qualidades e via meu futuro“. „Era um onça“... repete Juvenal. Desde então, vem sendo o substituto, vem tendo as honras de Samuel Querio-de-Deus.
      – „Consegui fazer numerosos alunos e hoje me encontro com 28 capoeiristas no ponto, pulando como ninguém a capoeira de Angola“.

      Os discípulos de Juvenal são rapazes admiráveis, em sua maioria estivadores que tomam suas aulas na rampa do Mercado, perto ao Cais dos Saveiros. Quem fôr ao cais do Mercado Modêlo, lá encontrará por certo os alunos de Juvenal que, nos descansos e nas horas de refeição, adquirem, na prática intensiva, as ancestrais virtudes e habilidades da Angola. Como seus alunos capoeiristas, Juvenal é um pacato e modesto estivador, que adora as coisas e as histórias da Bahia de Todos os Santos. Sua „cachaça“ é a capoeira, a capoeira de Angola, como faz questão de acentuar, para destacar da Regional, de mestre Bimba.

      O „CAPOEIRA“ DE ONTEM E DE HOJE

      Donde vem esta tão vistosa e popularíssima capoeria? Será uma das danças fetichistas, de que a Bahia é tão rica? Ou uma luta como tantas outras?

      Manuel Querino narra o tipo do capoeirista do seu tempo: „O Angola era em geral, pernóstico, excessivamente loquaz, de gestos amaneirados, tipo completo e acabado do capadócio e o introdutor da „capoeiragem“ na Bahia.

      A „capoeira“ era uma espécie de jôgo atlético, que consistia em rápidos movimentos de mãos, pés e cabeça, em certas desarticulações do tronco, e particularmente, na agilidade de saltos para a frente, para trás, para os lados, tudo em defesa a ataque, corpo a corpo.

      O capoeira era um indivíduo desconfiado e sempre prevenido. Quando nos passeios, ao aproximar-se de uma esquina, tomava imediatamente a direção do meio da rua; em viagem, se uma pessoa fazia gesto de cortejar alguém, o capoeira de súbito saltava longe, com a intenção de desviar uma agressão, embora imaginária“.

      O „capoeira“ de hoje é um tipo musculoso ou delgado, mas ágil e elástico, também loquaz e amaneirado, sem as encenações descritas por Querino. Não é um malandro, nem um profissional exclusivo de capoeira, que possa ser contratado para qualquer „servicinho“, a mando dos grandões. É mais um bailarino, um homem que vive a arte capoeirista e se julga o dono do mundo, pois como todo o artista sincero sente a necessidade de criar, sente as grandezas íntimas. É um trabalhador, um estivador que passa as horas do dia e até da noite no „pesado“.

      Nas horas de folga, a rampa do mercado pertence aos capoeiristas. Afigura-se-lhes palco imenso onde suas pernas se agitam na „vadiagem“, a pulsar a capoeira, ao som monótono e doloroso do berimbau, - o tin-tin que é uma obsessão amável.

      O capoeirista atual não traz „uma argolinha de ouro na orelha, como insígnia de fôrça e valentia, e o nunca esquecido chapéu à banda“, como antigamente. O equilíbrio absoluto ante um ataque adverso e a perícia, a prontidão para a defesa e a investida, são o que caracteriza o bom executante da capoeira. „Mostra a junta, que eu digo quem és“, exclama o capoeirista. Gosta de vestir camisa de urucubaca, frouxa, com calças largas, que facilitam os movimentos das pernas e do corpo. É comum o capoeira ter seu santo, que infalivelmente, é Oxossi ou Ogum.

      ANGOLA E REGIONAL

      Atualmente, existem duas formas de capoeira mais acentuadas. Para mim, a Angola parece a mais pura, a mais vital. A outra, a Regional, criação baiana de mestre Bimba. Bimba criou a Regional, juntando aos golpes e à presteza da Angola numerosos lances de lutas modernas, desde o box ao jiu-jitsu. A Regional não passa de um modernismo ao gôsto americano, uma luta livre de parceria com a capoeira. Não é por menos que alguns boys das fôrças ianques, quando do tempo

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      página 4

      da querra, aprenderam com Bimba a Regional, que não está no meio do povo, nem é praticada em praça pública, nas deliciosas festas populares baianas. A Regional está nas praias, nos recintos dos clubes elegantes, nos pés dos rapazes da família burguesa que se formaram na academia de Bimba. Apesar de tudo, acho que Bimba não deve pagar o pato. Pouca culpa tem. Homem pobre, sua profissão de marcineiro pouco lhe rende para enfrentar o alto custo da vida. Preferiu trair a Angola, a passar necessidades. As aulas de sua escola rendem dinheiro e Bimba vai passando, vai vivendo...

      Juvenal com sua autoridade condena a Regional. De seus lábios ouvi estas palavras:

      – „A Regional não é capoeira. Tem traços semelhantes a Angola. Tem golpes adquiridos de outras lutas. Foi criado por um angoleiro dos velhos tempos. A Regional só se conforma em pegar o adversário brutalmente no ato de qualquer desinteligência. Fisicamente, não aplica a defesa sem que não leve as mãos em cima do adversário. A capoeira de Angola tem golpes para aplicar em qualquer adversário, estando sôlto ou segurando o angoleiro. O capoeirista aplica a defesa sem pegar em seu competidor. Sei bem disso e me orgulho de ter tido um mestre que me ensinou o grande valor da capoeira de Angola. A verdade está no fato do capoeirista ser muito repentista e bom na junta.“

      OUTROS CAPOEIRISTAS BAIANOS

      Outro mestre de capoeira famoso foi Aberrê, que deixou discípulos muito respeitados. Aluno de Aberrê foi Onça Preta, que possui destacadas „rodas de mandinga“, no Pau Miúdo e no Alto das Pombas, lugares onde proliferam os candomblés. Pois, os capoeiristas têm, muitas das vêzes, ligações com as „mães e pais-de-santo“. Entre outros notáveis capoeiristas de lembrança mais remota, destaca-se Mangangá, nascido em Santo Amaro, no interior baiano. Mangangá, segundo Edison Carneiro, em „Negros Bantus“, era „o nome de guerra do conhecidíssimo capoeirista Besouro, herói legendário de incríveis façanhas“. Besouro entrou para o folclore negro, através de uma chula, cantiga de capoeira, que reza:

      „Meu mestre foi Mangangá;
      Na roda que êle estêve
      Outro mestre lá não há“.

      Besouro foi morto traiçoeiramente, pela polícia, por ter abatido oito „praças“ com a capoeira, de uma vez só.

      LUGARES DE „MANDINGA“

      A „mandinga“ está deixando, quase perdeu totalmente, o seu tradicional e sagrado teatro de lu-

      (continua na página 6)

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      página 5

      CAPOEIRA MATA UM!
      (Continuação da pág 11)

      tas: o bairro da Sé, o Terreiro de Jesus. Era no Terreiro que se desenrolavam as mais tremendas porfias dos capoeiristas. Organizados em bandos guerreiros, com seus gritos de alarme e bandeiras de luta, os „capoeiras“ se pegavam. Os encontros das duas facções de valentes pareciam choques da pororoca. Defendiam os „capoeiras“ tôdas as entradas que davam para a Sé. À noite, nos períodos da „vadiagem“, lá estavam guarnecendo a ferro e fogo, a ladeira de São Miguel, o São Francisco e as Portas do Carmo. A bandeira da Sé possuía uma áurea de heroísmo.

      Apesar dos pesares, o Domingo de Ramos e o sábado de Aleluia, em parte, continuam sendo o tempo preferido pelos capoeiristas para suas disputas amistosas, mais parecendo bailado que luta. As festas populares baianas, religiosas e fetichistas, é que oferecem a maior oportunidade para o interessado assistir os magníficos espetáculos de capoeira. Durante o ano, decorrem as festas de Boa Viagem, N. S. do Bomfim, Rio Vermelho, Santa Barbara, Conceição da Praia e tantas outras, de largo, por onde as rodas de „mandinga“ se multipicam, com o tim-tim dos berimbaus ferindo a noite e prendendo os assistentes. Na festa da Conceição da Praia, nem se fala. Já tomou a primasia de ser a revelação dos capoeiristas. Os festejos do 13 de maio também são ricos de rodas de capoeira, principalmente em Santo Amaro, na margem do Rio Subaé, em frente ao Mercado.

      O BERIMBAU

      Na rampa do Mercado Modêlo, mestre Juvenal reúne três de seus discípulos para a roda de capoeira. Com calças de trabalho e camisas de urucubaca, aproximam-se os alunos já formados: Reginaldo, um verdadeiro gato de agilidade, Evangelista e Antônio, dois estivadores musculosos e de passos largos. Acercam-se de nós os curiosos, ao avistar os berimbaus nas mãos de Evangelista e de outro angoleiro, exímio tocador do rude instrumento: ritmo imprescindível.

      O berimbau é mais que um instrumento. Sua função na capoeira é tão importante quanto a dos atabaques no ritual do candomblé. É a fôrça que galvaniza tôdas as energias e passes dos angoleiros, criando a africana atmosfera de mística e dualidade fetichista, em que se unem a música e a dança na invocação dos Deuses. O berimbau invoca, sim, os orixás da Nigéria. É o regente dos movimentos quer dolentes, quer agilíssimos, dos angoleiros.

      Ouço do Juvenal, a história do berimbau:

      – „A capoeira é uma luta de muitos anos, de muitos anos mesmo. Veiu com os africanos de Angola. Foi criada pelos escravos que a praticavam para resistir às prisões dos „senhores“ e aos castigos bárbaros dos „capitães do mato“. A capoeira era a maior arma que possuía o negro escravo. Proibida, tomou a feição de dança, para „despistar“. Daí, por diante, apareceu o berimbau. Não existe dança sem música, sem ritmo. O berimbau era a orquestra e os negros, nos dias de domingo, praticavam a capoeira ao som do instrumento improvisado. Mas, a capoeira é um esporte que ensina a lutar. Está enganado quem diz que a capoeira é dança. No principal, é combate, é defesa de corpo. Gostamos de dançar, gostamos do samba, e fazemos, também, da capoeira, uma vadiação“.

      Assim, é o berimbau: um instrumento único, simples e rudimentar. Uma vara de quase dois metros de comprimento, que se chama „verga“, prêsa fortemente, nas extremidades, por um „aço“, em forma de arco. Quase na ponta inferior da „verga“ está prêsa uma cabaça, que faz o papel de caixa de ressonância. Como se faz soar o berimbau? O tocador segura o instrumento com a mão esquerda, ao mesmo tempo que prende, com o polegar e o indicador, uma moeda antiga de 80 réis ou um vintém grande. A mão direita joga com uma vareta e um caxixi, espécie de acompanhamento caboclo, seguro pelos dedos médio e anular. Vibrando a vareta sôbre o aço, o angoleiro faz nascer o som abrupto, a fôrça motriz do instrumento, que se amplia no espaço da cabaça. Com a perícia que lhe é peculiar, o tocador aproxima ou afasta o vintém do „aço“, originando o som metálico, o tim-tim que forma o ritmo mágico da capoeira. Em compasso binário, prosseguem os toques metálicos do berimbau.

      A RODA

      Formada a roda de „mandinga“, quem primeiro dá as falas é o berimbau. Pandeiros e chocalhos completam a orquestra da capoeira. O chocalho atualmente é pouco usado, sendo comum a execução dos pandeiros. A arena para a luta forma-se naturalmente. Dois lutadores, apontados pelo mestre Juvenal, tomam lugares em frente à orquestra composta de dois berimbaus e dois pandeiros. Agacham-se os angoleiros Reginaldo e An-

      (Conclui na pág. 14)

    • +

      página 8

      „Capoeira mata um!“
      (Conclusão da pág. 6)

      tônio, demorando-se, nesta posição, por alguns instantes. Acho que a cena dos lutadores, reverenciando os berimbaus, tem semelhança com a cerimônia do „moutubá“ dos candomblés gêge-nagôs, na saudação aos instrumentos sagrados, os atabaques, e a „mãe-de-santo“. É uma espécie de preceito, em que os lutadores pedem a proteção dos orixás para si. Ao lado dos tocadores de berimbau, estão dois trovadores, inclusive Juvenal. O „mestre-da-roda“, que é o principal instrumentalista, tira a primeira cantiga, que não é exclusiva, como assinalaram alguns estudiosos e interessados na capoeira baiana. O escritor Edison Carneiro, em 1936, registra como a primeira cantiga de roda de capoeira de Angola a que assim começa.

      „Tava no pé da Cruz
      Fazendo a minha’oração,
      Quando chega Catarino,
      Feito a pintura do cão, etc.

      „Só depois dêstes versos, diz o escritor baiano, a luta começa“. Hoje, a luta realmente inicia, cessando as cantigas, quando o dono-da-roda grita para os lutadores, que ficam rondando na arena: „Vorta do Mundo“! ou „Olha a Volta do Mundo!“. Os angoleiros, com os braços alevantados, tocam de leve nas mãos, tomando depois posições para a peleja.

      AS CANTIGAS

      Qualquer cantiga importante pode dar início a roda de „mandinga“. Acompanhados pelas palmas da assistência, cantam os homens da orquestra:

      „Anum não canta em gaiola,
      Nem bem dentro nem bem fora;
      Só canta no formigueiro,
      Quando vê formiga fora“.

      É uma espécie de desafio. Vem outra quadrinha, tirada com graça:

      „Eu nasci no sábado,
      No domingo me criei;
      Na segunda-feira
      A capoeira joguei“.

      Interpretam, agora, uma das cantigas mais populares e interessantes da capoeira, que serve de estribilho para o côro:

      „Camará,
      É, camaradinho.
      Galo cantou. Ê, galo cantou,
      Camarada!
      Goma de gomar! Ê, goma de gomar,
      Camarada!
      Água de beber! Ê, água de beber,
      Camarada!
      Ferro de bater! Ê, ferro de bater,
      Camarada...

      Agora, surge a quadrinha predileta do „côro“ de todas as rodas de mandinga: é a expressão vocal da capoeira:

      „Zum, zum, zum,
      Capoeira mata um.
      „Zum, zum, zum,
      No terreiro fica um!“

      O cancioneiro da Angola possui uma riqueza e variedade sem comparações dentro do folclore negro da Bahia e do Brasil. A medida que muitas toadas saem de circulação na região da capital, outras são criadas pelos angoleiros, adicionando ao esplêndido acerco novos elementos e novos coloridos. A influência do mar, da vida cheia de perigos e venturas dos saveiristas, o espírito da marujada que aparece na rampa, que vinha no „Bahia“ e vem noutros barcos, se fazem sentir no cancioneiro da „mandinga“. Vejamos esta quadra:

      „Piauí, torpedeira!
      O couraçado „Bahia“!
      Marinheiro insubordinado,
      Tão pintando arrelia“.

      Aqui está uma cantiga notável, bem disputada nas rodas de capoeira, pela ascendência moral que imprime:

      „Menino quem foi teu mestre,
      Seu mestre foi Salomão;
      O discípulo que aprende,
      Em seu mestre eu dou lição.
      Que a capoeira tem muito enrêdo,
      Pulo contigo e te ensino
      O que você não aprender“.

      CAPOEIRISTA NA FEB

      Conta Manuel Querino que na guerra do Paraguai, vários capoeiristas participaram de suas lutas, consagrando-se como herói e por feitos arrojados na luta corpo a corpo. O cadête Melo foi condecorado e na frente „usava calça fôfa, boné ou chapéu à banda pimpão, e não dispensava o jeito arrevesado dos entendidos em „mandinga“.

      Também, na guerra recém-terminada, entre os expedicionários baianos que combateram os nazistas na Itália pela independência dos povos, jovens capoeiristas se sacrificaram na luta contra o fascismo armado. Juvenal jamais se esquecerá do cabo Rosalvo, seu aluno, que para sempre ficou mortalmente ferido na brancura das neves de Monte Castelo. Mais um angoleiro herói e por isso mereceu uma cantiga, muito cantada pelos apaixonados da „mandinga“:

      „Tu sentou praça no Exército,
      No primeiro regimento;
      De soldado foi a cabo,
      De cabo foi a sargento.
      O Brasil disse que tem,
      O Japão disse que não.
      Foi uma guerra poderosa,
      No morro de Castelo
      Que vencemos o alemão.“

      „VORTA DO MUNDO!“

      – „Vorta do mundo!“. Foi dado o grito de guerra pelo dono-da-roda. Todos em tôrno silenciam, com os olhos atenciosos nos dois angoleiros. Cessam os cânticos e as palmas. Permanecem, únicamente, os toques metálicos e decisivos do berimbau: ritmo, ritmo... Os lutadores caíram na arena, um em frente ao outro, fazendo menção de preparar golpes. Reginaldo larga uma „meia-lua fechada“ nos peitos de Antônio, que, em agilidade assombrosa, defende-se, „caindo na junta“, isto é, afasta o corpo um pouco para trás, resvalando sôbre os calcanhares. Bem não faz gesto, Antônio sapeca imediatamente uma rasteira sem efeito, pois seu adversário não deu folga para a vitória do golpe. O tim-tim do berimbau continua ininterrupto, marcando o compasso. As pernas no ar, assestadas ritimicamente, procuram alvejar o corpo de cada adversário. É um bailado vibrante e atraente como um abismo. São traços coreográficos que não param como dois semi-círculos a lutarem em movimentos indefinidos, dentro de uma arena circular. Grotesca e brutal, a capoeira é, também, uma dança pura e crua de dois corpos musculosos e ágeis, de duas fôrças maliciosas. Vejo a luta personalíssima e multi-variável, cuja descrição completa mereceria páginas. Os adversários pulam, criam situações incríveis, livram-se dos ataques traiçoeiros e violentos, ao mesmo tempo que aplicam novas investidas. Estão cientes dos mistérios e das artimanhas da luta. O golpe aplicado com maestria, por pouco efeito que consiga no adversário, um pequeno desequilíbrio sequer, é considerado ponto na capoeira amistosa. O angoleiro que conseguir maior número de pontos em certo período de tempo é considerado vitorioso.

      É comum, nas rodas de capoeira, colocar-se no centro da arena uma moeda. Os adversários disputam para apanhá-la com os lábios em primeiro lugar. O segrêdo está em não consentir que o inimigo se apodere da moeda. As pernas assumem uma função importantíssima em todo o jôgo. São tôda a agilidade e movimento. Os braços, pelo contrário, representam fatores de equilíbrio, no jôgo em baixo, e no ataque só funcionam no „Golpe de Pescoço“ e de „Dedo nos Olhos“, êste proibido nas lutas sem serem de vera. Nos „balões“, no entanto, as mãos são indispensáveis. Registro aqui, de acôrdo com mestre Juvenal, os mais respeitáveis golpes ou passagens da capoeira de Angola: „Cabeçada Sôlta“, „Cabeçada Prêsa“, „Meia Lua Baixa“, „Balão Açoitado“, „Rabo de Arraia“, „Balão Atravessado“, „Pulo de Chapa“, „Tesoura Fechada“, „Chibata de Calcanhar“, „Chibata de Peito de Pé“, „Meia Lua Virada“, „Duas Meias Luas num Lugar Só“ e „Pulo Mortal“.



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