• Correio Braziliense, Brasília
     A CAPOEIRA ANGOLA DE MESTRE PASTINHA NA LADEIRA DO PELOURINHO 
    21 de dezembro, 1967

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    Mestre Pastinha, 1967

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      A capoeira angola de mestre Pastinha na ladeira do Pelourinho
      Correio Braziliense, Brasília
      21 de dezembro 1967

      Reportagem de Yvonne Jean

      A Ladeira do Pelourinho cujas imensas e admiráveis casas evocam tôda a beleza da arte e cujo nome lembra toda a crueldade dos homens, a ladeira da qual o pelourinho dos negros sumiu mas que é hoje, todinha, um imenso pelourinho da miséria, a ladeira – símbolo da misteriosa cidade de Salvador e da civilização afro-brasiliera, era, mesmo, o lugar indicado para a sede da Academia de Capoeira Angola e quartel geral do Mestre Pastinha.

      O MESTRE

      Vicente Ferreira Pastinha é êste velho capoeirista bahiano – tem 78 anos – que iniciou a prática da capoeira Angola – „a única pura“, como diz – aos dez anos, com Mestre Benedito que veio da Africa. Ainda hoje, Mestre Pastinha dirige a Academia e toca, com seus discípulos, o berimbau, pandeiro, réco-réco, agôgo e chocalho, e com êles canta as melodias cujo rítmo „bole com a alma dos capoeiristas“, dando-lhes „graça, ternura, encanto e misticismo“.

      ANGOLA EM SOM MENOR

      E enquanto os capoeiristas cantavam „Canarinho da Alemanha / Quem matou meu curió; / Canarinho da Alemanha / Canta Angola em som menor / Canarinho da Alemanha / Eu canto a capoeira / Na Bahia e em Maceió“, o mestre, respeitosamente ajudado por seus alunos, - a catarata o tornou quase cego – aproximou-se e, logo, nos transmitiu a sua alegria.

      - „Sempre somos alegres, capoeira dá alegria", diz logo Mestre Pastinha, "pois não se trata só de preparar o indivíduo para o ataque ou a defesa contra uma agressão, mas também de desenvolver por meio de exercícios físicos e mentais um verdadeiro equilíbrio psíquico: o capoeirista é um homem que sabe se dominar antes de dominar o adversário e por isso a capoeira exige lealdade, obediência absoluta às regras do jôgo e algum misticismo".

      AO PÉ DO BERIMBAU

      Os dois primeiros capoeiristas preparam-se para o jôgo. A frente do conjunto, musical (todos os capoeiristas também são músicos, revezando-se), acocorados ao pé do Berimbau, ouvem respeitosamente os cantores. Benzem-se, giram o corpo no sentido do adversário e iniciam o „jôgo de baixo“.

      Mestre Pastinha comenta: - „Está sentindo esta alegria? O ódio está aninhado. Sumiu. Vou mostrar como o homem se prepara para a luta de amanhã, para defesa de sua própria integridade, cuidadosamente, para não ofender o próximo, e sempre desenvolvendo mais a resistência e agilidade.

      Já estamos impressionados por esta absoluta coordenação de movimentos do corpo, a „ginga“ e a maneira como o capoeirista distrai a atenção do adversário ao preparar a aplicação do seu golpe. Além do mais, tudo é realizado com a graça de uma dança.

      Perguntamos se também veremos, após a admiravel luta-dança, luta mesmo, para melhor compreender-mos como funciona a defesa pessoal e o ataque do capoeira.

      PARA VALER, NÂO!

      Mestre Pastinha quase se zanga:

      - "Sempre pedem espetáculo „para valer“. Não compreendem. Se fôssemos rivais… Isto não é box, que, com sangue frio, dá golpes dolorosos. A capoeira é folclore, é beleza, é alegria. Claro que prepara o homem para a luta e a defesa, mas, apesar de tôda sua malícia – ainda mais importante que a agressividade – é raríssimo um acidente no jôgo".

      E fala nas malícias que enganam o adversário: o capoeirista finge que se retira, volta-se rapidamente, pula de uma lado para outro, avança, recua, finge que não vê o outro, gira e se contorce, não tem pressa alguma, pois só desfere o golpe quando há pouca probabilidade de falhar.

      Ficamos empolgados pela agilidade da luta que se trava com as mãos, a cabeça e, principalmente, os pés. Uma luta por ataques contra os quais não haveria defesa possível caso acontecessem em briga. Seguros e, de impressionante beleza e ritmo.

      MULHERES CAPOEIRISTAS

      Mestre Pastinha conta que houve excelentes mulheres capoeiristas. Descreve com humor „as mulheres de ontem, com toda esta massa de fazenda, que levantavam suas saias e as colocavam na cintura, e lutavam, enquanto que hoje, que usam calças, não querem... E sabe porque? Porque querem calça americana, que acham mais bonita e eu não quero. Quero calça larga, prática, nada apertada nem bonita. A do marido, ou do pai, ou do filho. Mas elas não querem, não têm força de vontade". E após este desabafo, pinta uma cena: "a ladrão que entrou, de noite, na casa, o marido dormindo, a mulher assustada. Se fôsse capoeirista não gritava “socorro”, não botava a mão na cabeça, brigava mesmo e salvava a vida porque como meio de defesa pessoal não existe nada melhor.”

      Rímos com a cena que pintou e concordamos plenamente: não existe defesa melhor, e mais imprevista.

      MEIA LUA, RABO DE ARRAIA, CHAPAS.

      Os capoeiristas prosseguem sua luta, raspando com o pé o rosto um do outro, ameaçando mas sempre parando a um milímetro do alvo, na sua dança elegante e puramente desportiva. Lá vem o golpe “meia lua”, com seu movimento giratório da perna enquanto se desfere o golpe; agora plantam bananeira para atacar com os pés, de cima para baixo; deslocando-se com incrível velocidade; e vem a maliciosa “cabeçada” sobre o torax do adversário, e o “rabo de arraia”, em forma de chicotada da perna na cabeça; e a “chapa de frente” pela qual o capoeirista, de braços cruzados, derruba o outro ao suspendê-lo com a perna; e a “chapa de costas” com a rasteira assustadora; e o “jôgo de dentro”, no chão, com pés e mãos sem que o corpo toque no chão.

      O MACULELE

      Paremos a respiração. Mestre Pastinha nos apresenta o Getúlio, e o Sérgio, e o Manoel, e o jovem Lázaro, e outros, e promete algo especial, o “maculelé”. Enquanto se preparam, leio o poema no biombo:

      "Mandinga de escravo em ânsia de liberdade.
      Seu princípio não tem método
      Seu fim é inconcebível
      Ao mais sábio capoeirista”.

      Inicia-se o “maculelê” com o qual nos honram: uma espécie de esgrimo com paus. Uma luta frenética, ritmadíssima, executada com tanta perícia que os pesados paus parecem floretes aristocráticos e cujo ritmo doido canta uma melodia que embriaga.

      O TOQUE DE CAVALARIA

      Os capoeiristas descansam fazendo uns saltos mortais e plantando bananeiras. O chão do primeiro andar do no 19 da ladeira do Pelourinho treme, já foi consertado, não aguentará por muitos anos todo êste movimento, caso não se tomem medidas para proteger a bela casa tombada e a Academia mais brasileira que conhecemos.

      Já ficamos completamente empolgados pelo toque de Angola, o “Amazonas”, o “Yuna”, o toque de Santa Maria, o toque de cavalaria (êste avisava, outrora, aos capoeiristas que a cavalaria da polícia se aproximava, o como a capoeira era reprimida porque escravo não devia possuir tais meios de defesa, isto bastava para que a luta se transformasse em dança).

      “Bahia, minha Bahia, / Bahia do Salvador, / Quem não conhece Capoeira / Não lhe pode dar valor. / Todos podem aprender. / General e até Doutor, / Mas p´ra isso é necessário, / Procurar um Professor“.

      E professor é Mestre Patinha, que recusa a capoeira regional, - apesar de citar e admirar Mestre Bimba, e o Leopardo Negro, e Mestre Miranda, e Carlos Senna, - as misturas com lutas japonesas, box, etc., conservando a pureza da capoeira Angola – esporte e arte, agilidade e beleza, originalidade e imprevistos – que faremos questão, em 1968, de trazer para a capital da integração nacional, que não pode ignorar por mais tempo as sutilezas de uma das mais típicas e empolgantes manifestaçôes do nosso folclore e da nossa arte.

      Foto: Os discípulos do „Mestre Pastinha“.

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