• Jornal do Brasil, RJ
     PASTINHA O ÚLTIMO CAPOEIRISTA 
    15 de fevereiro, 1974

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    Mestre Pastinha, 1974

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      Pastinha o último capoeirista
      Jornal do Brasil
      Rio de Janeiro
      15 de fevereiro de 1974

      Francisco Viana
      Da Sucursal

      - Eu já nasci predestinado a uma missão: lutar capoeira. Venci centenas de adversários, formei mais de 10 mil alunos. Pela minha Academia passou do soldado ao Coronel, do operário ao escritor, do médico ao menino doente que precisava de exercício para desenvolver as juntas. Ainda estou aqui pela vontade de Deus. E êle eu sei que não vai me deixar sempre assim.

      Contempôraneo de Bigode de Seda, Tibiriçá, Antonio Braço Grosso e Bezouro, nomes que hoje são verdadeiras legendas na Bahia, tão bom quanto qualquer um deles, Mestre Pastinha é hoje, com a morte de Bimba, o último dos capoeiristas de uma geração precocemente condenada a viver apenas da glória dos livros, jornais e histórias populares que correm de boca a boca pelos quatro cantos de Salvador.

      Aos 85 anos, cego, doente e sem lugar para estabelecer uma nova Academia – a que tinha foi tomada pelo Governo – Mestre Pastinha ainda tem força para dançar e lutar a capoeira melhor do que qualquer dos jovens de rijos músculos adolescentes, como bem afirma Jorge Amado. Mas, desiludido com os amigos e autoridades que o abandonaram, sonha em utilizar a capoeira apenas para vencer a miséria do quarto úmido e abafado em que vive no bairro do Pelourinho, num cortiço onde mais de 100 pessoas se amontoam e se comprimem em cômodos cheios de ratos, baratas e goteiras.

      Foto: 85 anos, cego e sem esperanças

      Salvador – Na Rua das Laranjeiras, no Pelourinho, um garoto preto, forte, de mãos grossas e grandes, ironiza a coragem de um mulatinho magro miúdo, a quem durante muitos anos espancou. Não há bate-boca. A única pessoa que assiste a tudo é a mãe do pretinho forte, que da janela de uma casa procura ridicularizar ainda mais o adversário do seu filho: “Pequeno mais bobo, não cansa de apanhar”.

      Cinco minutos foram suficientes para o mulatinho vencer a briga, aplicando rabos-de-arraia, pernadas e uma cabeçada violenta. Desse dia em diante o pretinho forte não apareceu mais na Rua das Laranjeiras. O mulatinho passou a frequentar casas de jogo, entrou para a Marinha, conheceu mulheres, pintou paredes e quadros, ficou famoso como capoeirista.

      Sentado num banco desbotado pelo tempo, camisa verde e calça azul clara muito grandes para seu corpo miúdo e sem banhas, os pés descalços quase tocando com as pontas do dedo no cimento frio. Vicente Ferreira, o Pastinha, o último dos capoeiristas de Angola, conserva aos 85 anos uma excelente memória e não pensa mais em usar os golpes e a malícia que aprendeu no canzuá do Mestre Benedito para vencer homens fortes que gostavam de rir do seu aspecto frágil e ingénuo. Ele quer simplesmente vencer a fome.

      Cego, doente e sem lugar para estabelecer uma nova Academia desde que o Governo do Estado requisitou o andar que ocupava no Largo do Pelourinho, Pastinha, além da fome que muitos dos seus antigos alunos tentam espantar com pequenas ofertas de verdura, leite e carne, enfrenta o esquecimento dos antigos amigos e autoridades que antes o bajulavam. No entanto, não se lamenta e prefere falar pouco dos tempos ruins para “afastar o azar”, certo de que Oxalá, seu guia e protetor, vai iluminar novamente os seus caminhos lhe devolvendo a força, os alunos e a Academia.

      RATOS, BARATAS E FRIO

      Nós Capoeiristas temos alma grande
      Que cresce com alegria
      Há quem tenha alma pequena
      Que vive como as águas em agonia

      Aos 85 anos, Mestre Pastinha não tem muitas alegrias além dos cigarros que ganha de presente ou manda comprar com o pouco dinheiro que consegue economizar dos Cr$ 300 de uma pensão paga pela Prefeitura. Mora num quarto apertado, cheio de buracos na parede, onde além da cama, do guarda-roupa e do único e tosco banco sobra espaço apenas para o velho berimbau de onde vez por outra tira sons agudos e tristes.

      Costuma passar os dias inteiros sentado na porta do quarto número dois, que divide com sua atual companheira Dona Maria Romelia, ratos, baratas e pulgas. O cômodo fica no princípio de uma velho casarão na Ladeira do Pelourinho, um pouco acima do local onde durante várias décadas funcionou a sua Academia, hoje com o prédio sendo reformado para dar lugar a um hotel de categoria internacional.

      Quando eu sai de lá nem indenização recebi, pois tinha a promessa do Governador e do Prefeito de que voltaria logo que as obras de recuperação de Pelourinho terminassem. Qual nada! Não me devolveram o local e ainda me leviram tudo que eu tinha guardado ali: atabaques, berimbaus, medalhas, móveis e até o registrou da Academia. Se eu fosse 20 anos mais novo e não estivesse cego, abriria minha Academia em outro lugar do Pelourinho, que sempre foi o meu mundo, e voltaria a ensinar. Mas o corpo já não dá.

      BUSCA DA LIBERDADE

      A capoeira de Angola é boa
      Sua história não acabou
      Pastinha sustenta, grita e ressoa
      Capoeirista não nega o seu valor

      Pastinha nasceu no dia 5 de abril de 1889. Seu pai, José Sinó Pastinha, era um espanhol que comercializava com secos e molhados. Sua mãe, Dona Maria, era uma preta forte, ex-escrava, que gostava de contar histórias e näo queria ver o filho metido em confusões. „Mas eu nunca me liguei muito à família. Desde pequeno vivia metido nas rodas de capoeira. Aos 12 anos já ensinava a luta na Marinha, onde trabalhei algum tempo como civil. Com a capoeira me libertei dos grilhões que ligavam à família e dos homens que viviam me perseguindo só porque eu era pequeno, valente e ágil".

      Com 21 anos Pastinha tinha casa de jogo, algumas mulheres, ensinava capoeira na rua, engraxava sapatos, vendia doces, jornais, pintava quadros e frequentemente era obrigado a pedir ajuda à família de Jorge Amado para escapar da polícia por causa das brigas.

      - Capoeirista nunca dizia a ninguém que intava. Era homem astuto e ardiloso, como a própria luta, que se disfarçou com a dança pra sobreviver depois que chegou de Angola. Até que dava gosto ver aquele pessoal forte, abusado, cheio de conversa, brincar e arreliar a gente nos forrobodós, para minutos depois estar arriado no chão, gemendo e chamando pela polícia, que quando chegava também entrava no samba.

      Quando lembra o passado, Pastinha parece voltar no tempo. O velho e o menino se fundem numa só pessoa e sua fala fica mais forte, seu corpo creto e ainda vigoroso se lança para a frente, com as mãos traçando linhas no ar, como se representassem os golpes que no passado tão bem soube aplicar. Mas o cansaço e a realidade chegam alguns segundos depois e ele se posta silencioso, com as olhos fechados e as pernas uma muito junta da outra.

      TATEANDO NO ESCURO

      A capoeira rasga o veio dos algozes
      Na convicção da fé contra a escravidão
      Doce voz, teus filhos foram heróis
      A capoeira ama a abolição

      Falador, minucioso quando explica coisas da capoeira, „com mais de mil golpes, a maioria mortais“, retraído quando se lembra da família que nem se lembra dele, e das autoridades que o esqueceram. Pastinha é de tempramento quase sempre calmo, mas pode enfurecer e virar um touro se alguém tentar burlar a sua liderança.

      - Fica aqui, você também é capoeirista e pode me ajudar a lembrar muita coisa. Não vai sair agora não. Responde ao moço tudo que ele perguntar, pois eu já estou cansado e preciso parar um pouco – diz ao antigo aluno que lhe foi procurar por tem ouvido um boato sobre sua morte. „Eu ainda não morri e, por isso, todos são meus discípulos“, afirma.

      Sua liderança é e sempre foi indiscutível, embora ele próprio se autodefina como „um ingênuo com cara de besta“. Jorge Amado é um dos poucos amigos que não o esqueceram e sempre está atento para ver se há necessidades de remédio, médico ou comida. Foi ele quem teve que interferir junto ao Prefeito para que o Mestre não perdesse – com a recente extinção da Superintendência de Turismo de Salvador – a pensão de Cr$ 300 que recebe „por serviços prestados ao turismo“, sua única fonte de renda (deste dinheiro paga Cr$ 120 pelo aluguel do quarto e ainda Cr$ 30 de luz).

      - Quando eu era moço – afrima – antes da congestão que me deixou cego, eu era influente: tinha dinheiro e prestígio. Agora, acho que já faço parte do passado, embora muita coisa ainda precise da minha opinião, dos meus conhecimentos e da minha presença.

      Continua:

      - Engraçada a vida! A fama chegou para mim como se eu não estivesse preparado. No princípio, sentia uma certa vaidade e pensava: formidável, todos falam de mim, todos necessitam de mim, um mulatinho descendente de escravos. Terrível é descobrir que tudo isso é falso, que de tudo a única coisa real foi a capoeira.


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