• Jornal do Brasil, RJ
     ESTE É O MESTRE PASTINHA 
    17 de abril, 1978

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    Mestre Pastinha, 1978

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      O negrinho, berimbau na mão, riso vivo no canto da boca, aponta aos turistas o velho encolhido no banco, duas mãos na cabeça para protegê-la da madeira dura:

      „ESTE É O MESTRE PASTINHA“
      Jornal do Brasil
      17 de abril 1978

      Antônio Jorge Moura
      Foto de Artur Ikssima

      Salvador: „Guardião da capoeira de Angola“, como o intitula o escritor Jorge Amado, „elemento conservador e esteio da genuína luta-dança dos escravos“, na observação do artista plástico Caribé, ou simples personagem das ladeiras históricas e da vida sofrida do Maciel e Pelourinho, Mestre Pasitnha – Vicente Ferreira Pastinha – completou na quarta-feira (5 de abril) 89 anos de idade e 81 dedicados à capoeira.

      Pastinha está cego há 15 anos, e há 10 sem academia de capoeira. O corpo está alquebrado pela velhice, mas conserva lúcidas lembranças, expressa legítimos valores a ele legados pelos negros através da capoeira e guarda queixas amargas dos dirigentes e órgãos reponsáveis pela valorização e preservação do partimônio cultural da Bahia.

      A casa onde funcionava sua academia de capoeira, Angola, abriga hoje o restaurante de comidas típicas do Senac. Na ladeira estreita do Pelourinho, em outra casa de corredor escuro, cheirando a mofo, caminho do banheiro coletivo dos moradores do casarão (de número 14), o velho estendido no banco de madeira, boca aberta no cochilo, lembrado pelos moleques que o exibem para tirar uma grana dos visitantes, é o guardião da capoeira, o esteio de preservação da herança dos negros e um persaonagem da vida sofrida das ladeiras escorregadias, dos casarões decadentes que pertenceram aos senhores do açúcar.

      EI maió é Deus/Ei maió é Deus/Pequeno sou eu/O que eu tenho/Foi Deus quem deu/Na roda de capoeira ha-ha/grande-pequeno sou eu/Grande-pequeno sou eu.

      O som do berimbau, acompanhado no ritmo pelo pandeiro boca de banco, e o coro dos poucos amigos que foram abraçá-lo emocionam o velho pequeno-grande, pequeno para seu Deus, como expressa na música, pequeno na estatura, mas grande na roda de capoeira. Pastinha nasceu em 1889 e aprendeu capoeira com Benedito, um negro liberto, seu vizinho, aos oito anos de idade. Eram os tempos dos grupos de vadios, da perseguição policial às manifestações dos negros. “Não existia mestre, professor, catedrático em capoeira. Existiam grupos que gostavam da brincadeira”, lembra Mestre Pastinha.

      O casarão número 14 do Pelourinho – lugar de escravo apanhar – é apinhado com mais de uma dezena de famílias, separadas em suas intimidades por frágeis e inconfidentes compensados de madeira. Na entrada, funciona a loja de um artesão de sandálias. A frente, fica a escada e à esquerda está o corredor. Em dois quartos debaixo da escada, com menos de 10 metros quadrados cada, moram o Mestre Pastinha, sua mulher, Maria Romélia Costa Oliveira – dona Nice – três filhas – Riamunda, de 20 anos; Angélica, de 17; e Cristina, de sete, e três netos – Cristino, de seis anos; Antônio Raimundo, de três; e Anne, de um ano e oito meses.

      Mestre Pastinha ficou entre os primeiros moradores desalojados, em 1967 [1977?], para o início da recuperação do Pelourinho. A casa foi desocupada pela Prefeitura de Salvador e Senac para dar lugar ao restaurante. A academia, que conservava apesar da cegueira, acabou. Todos os objetos da capoeira – 14 bancos de madeira, berimbaus, atabaques, agogôs, reco-recos, quadros a óleo pintados por ele, livros e registros da academia, cartas, corresponências do exterior, bandeiras, o brasão da academia, móveis em jacarandá – desapareceram, apesar de ficar sob guarda dos responsáveis pela desapropriação. Segundo afirma, foi o único morador do casarão que não recebeu indenização pelo despejo.

      - Mestre Pastinha merece ter uma situação exceptional na Bahia. Trata-se de um grande mestre da nossa cultura popular e deveria ser amparado pelos poderes públicos e pela população, para que ele possa viver com dignidade. Toda a cultura da Bahia, toda a sua importancia, é forjada pela sua ligação com o popular e Pastinha, além de grande mestre dessa cultura, é guardião de um inestimável valor, que é a capoeira de Angola – afirma o escritor Jorge Amado.

      Pastinha foi também marinheiro. Entrou para a Marinha de Guerra, para onde iam todos os traquinas – “Menino, tu vai pra Marinha que é pra consertar”. Passou oito anos aprendendo a arte da guerra. Saiu em 1910, foi em seguida alfaiate, marceneiro, pedreiro, carpinteiro e, sobretudo, capoeirista. Pintou quadro a óleo, um dos quais conservados pelo artista plástico Caribé – Vicente Pastinha, sua Academia, de 1958. Foi jogador de carne-seca, o grilo comeu minha mandioca, picula jogou búzio e carteado. Instalou a academia em 1942 [em Brotas – velhosmestres.com], depois de tomar conta de muitas rodas de capoeira.

      - O segredo da capoeira morre comigo e com muitos outros. Também continua viva alguma coisa. Capoeira não é minha, é dos africanos. Deus deu aos africanos. Dos africanos ficou uma coisinha para mim. Herdei alguma coisa. Sou herdeiro da arte dos africanos. Mas capoeira é brasileira, é nacional, património nacional. A mandinga dos escravos é africano-brasileira, porque dos africanos no Brasil – diz com a voz pausada.

      MESTRE Pastinha conserva as normas da capoeira de Angola e afirma-a como a legitima. Um outro grande capoeirista, Mestre Bimba, já morto, criou a capoeira regional, introduzindo elementos de outras lutas e variações no ritmo da música do berimbau. “Não conheço o que é regional. Sei o que é Angola. A única dos angoleiros. São centenas de golpes. Tudo é golpe de Angola. Juntando todas as profissão, tudo é golpe de Angola. O boxe tem sequência, o futebol tem exercício da capoeira, a luta romana tem golpes de Angola. Portanto, classificando todas as profissão, a capoeira é pai e mãe de todas elas. Já disse tudo”.

      Esta preservação dos valores e elementos genuínos da capoeira de Angola que defende Mestre Pastinha, torna-se tarefa árdua talvez impossível, com a intensificação da indústria do turismo. Os grupos folclóricos organizados a partir das proprias academias estilizaram os volteios, a jinga, a mandinga, com elementos de dança moderna e do balé. A capoeira de Angola “é uma dança belíssima, a única briga ou luta musicada. Nas cantorias um pouco da História da Bahia e do Brasil”, observa o artista Caribé.

      Eu estava lá em casa/ Sem pensá sem maginá/ E vieram me buscá/ pra ajudá a vencer/ a Guerra do Paraguá ha-ha.

      Debaixo de um pé de fruta-pão, na esquina pouco movimentada, atentos ao trotar da cavalaria, no terreiro do fundo de uma casa, os grupos de pedreiros, estivadores, a malandragem, homens do comércio, doutores – “por debaixo do pano ou nas vistas”, trabalhadores de todos os matizes reuniram-se no sábado e domingo para dançar a capoeira. “A filosofia era jogar de roupa branca e não se sujar. Alguns usavam chapéu de palhinha, leve, mas não deixavam cair. Até com o chapéu tem golpe de Angola. Olha a mandinga! Era arte, regra do pessoal. Usavam fraque, cartola, chapéu de pêlo.”

      - Eles classificavam de capadoçagem: “São os capadócios que jogam capoeira”. A mesma coisa faziam com o candomblé. A capoeira era odiada pela polícia, pelos governadores, ministros e muita gente grande. Mas a verdade eu sustentei até hoje, com também os camaradas que jogavam a capoeira e o pessoal que acompanhava. Quando fui tomar conta de uma roda, disse aos meninos: “Vou botar vocês dentro da sociedade”. Isso na frente de mais de 50 alunos.

      - Capoeira é amorosa, capoeira não é perversa como muitos pensam e fazem – sentencia Pastinha – A capoeira é um costume como qualquer outro. Um hábito cortês que nós criávamos dentro dos nossos espíritos. A dança do negro, coisa vagabunda dos sábados e domingos, mas que a gente gostava.

      Pastinha pára e diz que vai relatar um episódio, “para mostrar a esses que a capoeira não é coisa de morte de quebrar braço de camarada e até matar”.

      - Tinha um capoeirista de nome Velocidade, ve-lo-ci-da-de. Sabe o que é um capoeirista com o nome Velocidade? Pois bem. Fomos numa roda no Bigode. Saltamos aqui, ali, recebi aquele pau na banda da cara. Dormi. Quando acordei, ele disse: “Me desculpe seu Pastinha”. Dormi de novo. Levantei e ele não queria mais jogar. Disse: Não, vamos brincar mais cinco minutos. Jogamos e logo ele estava estendido no chão, meu pé tocando no seu rosto. Os camaradas diziam: “Aperta, Pastinha”. Deixei ele com os olhos arregalados, não fiz nada. Sou mestre, apanhei na capoeira, mas não machucava um camarada.

      - E a capoeira como arma de defesa do negro?

      - Prefiro sileciar sobre isso. Na minha época, se eu tivesse necessidade de usar, então eu usava. Mas esse pessoal não sabe o que é isso. Uns têm como folclore, uns como diversão vagabunda e outros têm a capoeira como valor que se conservou. É segredo que vem da própria alma do negro. Mas eles estão fazendo acobracia. Tudo que principia, acaba. Aquilo que é justo, que Deus deu a cada um de nós, termina assim mesmo. É mandinga de escravo. Capoeira é apelido e mandinga de escravo morre com os escravos.

      No corredor do 14, Mestre Pastinha, deitado, encolhe-se no único banco de madeira que salvou de sua academia. Dona Nice prepara a comida e a massa do acarajé. Ela vende no Hotel do Pelourinho – “moramos onde hoje é o hotel, hospedagem dos grande” – no Farol da Barra ou na Fonte Nova em dias de futebol. O negrinho, berimbau na mão, riso vivo no canto da boca, entra e aponta o velho encolhido, duas mãos na cabeça para protegé-la da madeira dura: “Este é o Mestre Pastinha”.

      Dona Nice, desconfiada, mexe nas panelas enegrecidas e arruma o fogão instalado junto à cama do quarto. A moça se aproxima e diz: "Mestre Pastinha, sou Chiquinha lá do Rio de Janeiro. Soube que o senhor estava por aqui. O pessoal pensa que o senhor já morreu”. Pastinha abre a boca desdentada, como num sorriso. “Pois é, eles pensam que já morri, que estou velho e não tenho mais nada a dar”, a voz rasga em mágoa a garganta rouca.

      Para Jorge Amado, Pastinha tem sido vítima de “inúmeros vigaristas, que querem explorar seu nome”. Caribé e o diretor da Fundação do Património do Pelourinho, Mário Mendonça, vêem em dona Nice fator fundamental para a vida de Pastinha. Não permite que o explorem. Se puder, retira para dar a ele. Mas o Mestre sempre ludibria sua vigilancia – “Aranha vive do que tece” – sagaz. “Aqui deitado, sentado, deitado, sentado, comendo, bebendo, ouvindo as prosas dos que querem conhecer da capoeira e escrever livros sobre a capoeira”.

      Eeeeeuu tenho dois menino/que se chama joão/ Eeeeeuu tenho dois menino/Que se chama joão/Um é cobra mansa/Outro gavião/Um enrosca pelo ar/ E o outro pelo chão/ Camará.

      - Quantos senhores querem fazer do mundo livro, romance. Não é com 50, nem 100 anos que vão fazer um bom livro sobre a capoeira. Um diz uma coisa, outro desfaz e fica a confusão, a mentira, a balbúrdia, entre eles. O certo ninguém pega, porque eu não digo tudo. Converso metade, outros capoeirista dizem o contrário do que eu disse. Muitos rapazes para capitular a capoeira saem daqui para São Felix, Maragogipe, Santo Amaro da Purificação, em todos lugares onde encontram capoeiristas. Mas uns dizem o contrário dos outros e isso não pode dar certo.

      AOS 89 anos, Pastinha tem apenas uma pensão de três salários mínimos (Cr$ 2 mil 400) da Prefeitura de Salvador. É o único arrego do velho capoeirista, mestre de Angola, herdeiro da mandinga dos escravos. O diretor da Fundação do Pelourinho, Mário Mendonça, diz que Mestre Pastinha interessa à instituição „como povo do Maciel. Estamos voltados para outros personagens da área, que estão sendo deslocadas para a recuperação do casarão“.

      „Pastinha, de tudo que foi, resta o imenso respeito. Sei que a situação dele é a pior possível, como da maioria do povo do Maciel e Pelourinho.“ Um plano existe na cabeça dos técnicos e sociólogos da Fundação: reorganizar a Academia Angola do Mestre Pastinha. A melhor maneira de reabri-la, diz Mário Mendonça, é oficializá-la, destinando metade da renda dos alunos para Pastinha. Segundo Jorge Amado, isso afastará „os aproveitadores e permitirá que Pastinha viva com dignidade e não como um bicho“.

      A idéia é exequível, segundo Mário Mendonça, mas depende de espaço, que após a recuperação do Solar do Ferrão, no Maciel, a Fundação irá dispor em outros prédios. „Quem sabe, o Mestre Pastinha possa comemorar os 90 anos em sua nova academia?”, indaga.


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