• Jornal do Brasil, RJ
     AOS 90 ANOS, CEGO E DOENTE, PASTINHA OBTÉM ALTA DO HOSPITAL 
    26 de fevereiro, 1980

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    Mestre Pastinha, 1971

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      Aos 90 anos, cego e doente, Pastinha obtém alta do hospital
      Jornal do Brasil
      26 de fevereiro de 1980

      Foto: Pastinha: no final da vida, mágoa e queixas. Arquivo (6/8/79)

      SALVADOR – Depois de passar três meses internado no Hospital do Servidor Público e, novamente, desencantado como as promessas de ajuda de políticos que chegaram a tirá-lo do leito da casa de saúde para exibi-lo cego e surdo na televisão, recebeu alta e retornou ao seu cubículo do Largo do Pelourinho o ancião Vicente Ferreira Pastinha, conhecido em todo o país como Mestre Pastinha. No próximo mês de abril ele completa 91 anos, quase todos dedicados à preservação da capoeira na Bahia.

      O „guardião da capoeira de Angola“, como o considera Jorge Amado, „o elemento conservador e esteio da genuína dança dos escravos“, segundo observação do artista plástico Caribé, „somente conseguiu acumular novos desenganos e decepções nesses últimos meses“, de acordo com as palavras de sua mulher, Maria Alice, de 70 anos de idade. Mestre Pastinha saiu do hospital quase como entrou: „Doente, sem casa e sem saber como sobreviver“.

      Com o retorno do Mestre Pastinha ao mesmo cubículo úmido e insalubre que ocupava antes no Pelourinho, apontado pelos médicos como um dos responsáveis pelo seu atual estado de saúde, a primeira providência da companheira do capoeirista foi advertir que políticos, jornalistas e mesmo homens de Governo não vão mais tirar partido de Pastinha, pois eu não vou deixar“.

      - Promessas já ouvi muitas, mas os fatos atuais e passados são cruéis. Basta lembrar a expulsão de meu marido, há oito anos, pela Fundação do Pelourinho, do prédio no período onde ele sempre mantivera a sua academia de capoeira. Naquele tempo, como agora, ninguém reagiu a não ser para enganar, ficou tudo por isso mesmo. Agora ele está mais velho, mais doente e mais desenganado“, desabafou a Sra Maria Alice.

      Às pessoas e jornalistas mais conhecidos a Sra Maria Alice permite apenas que vejam o Mestre Pastinha, em cima de um colchão „doado por um amigo“. Cego, distante, embora com uma máscara de sofrimento permanente no rosto, o mestre fala, enquanto sua companheira, sentada próxima à porta, vigia para não deixar entrar estranho, nos momentos em que, apesar dos 70 anos, não é obrigada a estar em seu tabuleiro vendendo acarajé, „para manter Pastinha, como sempre fiz desde que ele adoeceu há anos".

      Às vésperas de chegar aos 91 anos, o Mestre Pastinha saiu do hospital do servidor público ainda mais alquebrado pela velhice, embora conserve ainda lúcidas algumas lembranças. E guarda queixas amargas de políticos, govenrantes e orgãos responsáveis pela valorização e preservação do património cultural da Bahia.

      A casa onde funcionava sua Academia de Capoeira de Angola abriga hoje o restaurante de comidas típicas do Senac, enquanto ele foi transferido para um cubículo em outra casa próxima, na condição de um dos primeiros moradores desalojados, em 1967 [1971], para o início da recuperação do conjunto colonial do Pelourinho.

      A famosa Academia de Capoeira de Angola desapareceu. Desapareceram também todos os objetos de capoeira: 14 bancos de madeira, berimbaus, atabaques, agogos, reco-recos, cartas, correspondências do exterior, bandeiras, o brasão da academia e móveis de jacarandá.

      Revoltado com o abandono e a exploração que vêm sendo praticados ao longo dos anos contra o capoeirista, o escritor Jorge Amado protestou recentemente: “Mestre Pastinha merece ter uma situação exceptional. Trata-se de um grande mestre da nossa cultura popular e deveria ser amparado pelos poderes públicos e pela população, para que ele possa viver com dignidade. Toda a cultura da Bahia é forjada pela sua ligação popular e Pastinha, além de grande mestre de nossa cultura, é guardião de um inestimável valor, que é a capoeira de Angola”, afirma o escritor.

      Em seu cubículo do Pelourinho o mestre comenta: “O segredo da capoeira morre comigo e com muitos outros. Também continua viva alguma coisa. Capoeira não é minha, é dos africanos. Deus deu aos africanos. Dos africanos ficou uma coisinha para mim. Herdei alguma coisa. Sou herdeiro da arte dos africanos. Mas capoeira é brasileira, é nacional, partimónio nacional” adverte o mestre.


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