• O Globo, Rio de Janeiro
     CAPOEIRA - Uma grande polêmica nas rodas baianas 
    16 de fevereiro 1982



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    O Globo, 16/fev/1982

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      CAPOEIRA – Uma grande polêmica nas rodas baianas

      Depois dos mestres Bimba e Pastinha, o que é e o que não é autêntica

      SALVADOR (O GLOBO) – Assim como o berimbau, tosco instrumento de uma só corda, que varia o seu timbre basicamente com um som mais agudo em contraste com outra batida grave, a capoeira, apesar de todas as transformações por que passou, continua, na Bahia, regida por duas linhas: a de „Angola“, mais suave, detalhista e meticulosa e a „regional“, mais aberta, vigorosa e destemida.

      Por trás destes estilos, como guardiães ocultus, dois grandes nomes ainda povoam a memória das inúmeras academias, desde as mais pobres, que funcionam em salas escuras de velhos casarões, até as mais ricas, em modernos ginásios, as „butiques de lutas“, como são chamadas pelos mais radicais. Os nomes de gestos, dialetos e comportamentos próprios.

      Para eles, um silencioso „Iuna“ – toque de berimbau que informa, saudando, a presença de capoeiristas famosos em sua roda, assistindo à luta – parece soar em constante homenagem. Um respeito que, todavia, não impede seus seguidores de continuarem criando, a cada dia, novas seqüencias no alfabeto básico e imutável da luta.

      Em um bairro pobre para lá de Itapoã, alternando os seus 74 anos bem vividos entre o bater dos tijolos da sua labuta diária de pedreiro e as batidas vigorosas do pés no velho chão de barro, mora o único dos „velhos mestres“ ainda vivo na Bahia. É o mestre „Cobrinha Verde“, temido discípulo do afamado „Besouro“ que, no século passado, divertiu e aterrorizou o Recôncavo Baiano.

      Tal qual seu mestre, „Cobrinha Verde“ ainda assusta e supreende: na roda de capoeira, jogando com rapazes de 20 anos, ele é capaz de „gelar o sangue“ de muita gente, ao fazer surgir, entre os dedos do pé durante a luta, uma brilhante e afiada navalha.

      Hoje, mestre „Cobrinha Verde“ é patrono e, digamos, „catedrático“ da „Associação de Capoeira Três Amigos“, pertencente ao mestre „Mal“ e ligada à linha de Angola. É nos domingos que ele aparece, como um guru, na sede da Associação, deixando os 30 alunos da academia extasiados com a exibição de capoeira com navalha nos pés, prática extinta atualmente.

      Para viver, „Cobrinha Verde“ é pedreiro, morando em Itinha, bairro afastado de Salvador. Nas horas de lazer, fabrica varas de cipó caboclo, „especial para uma sova exemplar“. Experiente que ele não precisou usar, quando, na década de 30, se viu cercado, em Santo Amaro da Purificação, por um contingente policial, comandado pelo delegado Veloso – que, segundo ele, era avô de Caetando e Betânia, e também apanhou junto com seus soldados.

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      Relembra ainda, entre risadas, que, em 1925, foi alvo de 18 tiros, mas nenhuma bala o acertou, enquanto ele saltava e rodopiava para todos os lados. Mas seus feitos não ficaram restritos a brigas de ruas ou exibições nas rodas de capoeira. Na Bahia, várias pessoas sabem de suas participações no bando do temível coronel Horácio de Matos – que durante anos dominou todo o centro-oeste baiano - e na Revolução Constitucionalista de São Paulo.

      – No meu batalhão tinha 85 homens – confirma „Cobrinha Verde“ – e só eu sobrevivi. Talvez tenho sido por causa da malícia.

      Mestre „Mal“, Marcelino dos Santos, que evidentemente se orgulha de ter a seu lado um dos mais antigos „angolistas“ vivos, afirma com convicção que a sua é a „única academia do Brasil e do mundo, possivelmente, em que sobrevive a capoeira de Angola mais autêntica“.

      Formada inicialmente por ele e os mestres „Bom Cabrito“ e „Mala“, hoje a Associação de Capoeira Três Amigos“ é composta de mestre „Mal“ e seus dois filhos, de apelidos bastante reveladores: Edmilson „Encrenca“ e Edmar „Esparro“. „Encrenca“, além da academia, dirige um famoso show folclórico num restaurante de Salvador, e, apesar dos seus 18 anos, surpreende pela malícia e experiência na capoeira, que conhece desde os oito anos de idade. Capoeirista também dos melhores, serve na academia, Gilberto José Ferreira, o „Gigi“.

      A academia de mestre „Mal“ não é a única a acumular a grande sabedoria da linha de Angola. Alunos dos grandes mestres, vale citar os nomes de guerra dos mais ativos mestres de capoeira da atualidade.

      Originários da capoeira de Angola, os mais significativos são, sem dúvida „Cobrinha Verde“, „João Pequeno“, „João Grande“, „Bom Cabrito“, „Gato“, Waldemar, Marcelino, „Mala“, Virgílio, „Bobó Babosa“, „Canjiquinha“, „Curió“ e „Caiçara“.

      No ramo – „regional“ – quase todos discípulos diretos do legendário „Bimba“ – destacam-se „Itapuã“, „Vinte e Nove“, „Braz Amansa Brabo“, „Vermelho 27“, „Medicina“, „Banduê“, Capazans, Ezequiel e Hélio „Xaréu“, este contratado pela Escola de Educação Física da Universidade Federal da Bahia, onde faz um trabalho de base com mais de 400 alunos.

      Já numa linha evolutica, mesclando a capoeira com rudimentos de artes marciais do Oriente, podem ser citados „Boa Gente“, „Nêgo Elísio“, „La Bamba“, Giovani, „Bocanha“, Sena e Aristides.

      Trazendo na sua raiz um antagonismo – a luta e a dança – e durante dezenas de anos vista como uma coisa de „negro e de pobre“, a capoeira, hoje, depois de

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      Na segunda foto, à direita, academia de mestre Mal, da linha de angola; o bom acompanhamento do pandeiro e do berimbau; na primeira foto, alunos de mestre Boa Gente; mistura de capoeira com luta oriental

      ter rompido com essas visões esquemáticas, está dividida por um nova questão: a do „autêntico“ e do „inautêntico“.

      Esta discussão, que pode parecer defasada depois do advento de mestre Bimba (que, com destemor, a partir da década de 40, começou a atrair para o universo da capoeira, então preponderante de Angola, diversos golpes e procedimentos de outras lutas), ressurgiu após sua morte e a de „Pastinha“.

      Enquanto viviam, a discussão nascia e morria entre eles tal o respeito que inspiravam e a liderança que exerciam. „Pastinha“, de gestos calmos e voz mansa, apesar de sutis críticas ao pessoal da capoeira regional, vaticinava que as duas linhas divergiam mas eram irmãs: „duas almas em um corpo só“. „Bimba“, grandiloqüente e sorridente, pensava da mesma forma, apesar de insinuar que a „regional“ era mais demolidora.

      Morreram os mitos e guias da capoeira e „quando morre o senhor, se açoda a vassalagem“, interpreta Jota Bamberg, estudioso do assunto, conhecido na capoeira como „Jota Angolinha“.

      Para ele, não se pode dizer que a capoeira esteja morrendo: o que está acontecendo é uma perigosa e irreversível acefalia da capoeira, a nível de lideranças naturais e, ao mesmo tempo, uma necessidade enorme de se conduzir um processo de organisação da atividade, com o cuidado de preservar a luta na sua essência.

      Na opinião de Bamberg, na maioria da academias não há mais „ginga“ nem malícia, „é só pancadaria grossa“. Os capoeiristas preparados em algumas associações não conhecem os toques de berimbau „determinantes da dinâmica e de situações de combate diferentes“. Hoje, o berimbau, o atabaque e o pandeiro apenas marcam o ritmo. As cantorias tradicionais, dando indicações aos contendores, também seriam, nos dias atuais, pouco conhecidas.

      Estas críticas de Jota Bamberg, na verdade, podem ser constatadas em diversas academias, tanto da linha „regional“ como de „Angola“. Pode-se perceber facilmente que muitos praticantes da „regional“ não sabem que o toque „São Bento Grande“, no berimbau, sugere jogo duro; que a batida „Idalina“ ou a „Amazonas“ determinam um jogo equilibrado, semi-demonstrativo.

      Até 1950, aproximadamente, jogar capoeira era uma atividade comunitária, praticada nos encontros de domingo, nas feiras, principalmente. O domingo de um capoeirista era, invariavelmente, composto da missa, que freqüentava logo cedo, seguido da briga de galo, acompanhado de uns tragos, e da roda de capoeira, onde o praticante entrava de chapéu, paletó de linha branco, sapato de bico fino e óculos, se tivesse. Depois do almoço, uma partidinha de dominó e a roda era novamente formada.

      A roda de capoeira, que nasceu espontaneamente, não se sabe ao certo quando nem onde, foi sucedida pelas academias, que, de início mantiveram as carateristicas originais do jogo. „Depois começou o tratamento da capoeira como folclore entre aspas“ – queixa-se Jota Bamberg, citando a proliferação de grupos folclóricos, „formados para apresentações em palácios e viagens ao exterior“.

      Nesse contexto, as presenças de mestre „Bimba“ e mestre „Pastinha“ tiveram significação acentuada, como guardiães dos princípios e da essência da capoeira mais autêntica. „Pastinha“, por ter feito chegar às academias o universo que existia nas antigas rodas, e „Bimba“, por ter sido o reorganizador e sistematizador da capoeira que passou a ser chamada „regional“, criando sete seqüencias básicas e introduzinho golpes de jiu-jitsu, luta livre, box e greco-romana.

      Muitos vêem nesta „abertura“ de „Bimba“ o início das deturpações na capoeira. Nada mais errado. Como nada mais equivocado do que imaginar que a capoeira está agonizante na Bahia. Mesmo com estes „acidentes de Percurso“, ainda se pode ver sua malícia espalhada nos quatro cantos de Salvador.

      Poucos souberam tão bem disto como o próprio mestre „Pastinha“. Mesmo cego, desalojado pelo Governo de sua academia e passando fome, ele dizia que enquanto houvesse dois pretos, dois mulatos, „ em suma dois baianos“, a capoeira não morreria.

      – Corta a cabeça, nasce outra. Morre um mestre, tá nascendo outro.

      Mestre Cobrinha Verde faz uma demonstração – hoje em desuso – de capoeira com navalha no pé, reminiscência do tempo em que era empregada como luta de defesa


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