• Samuel Francisco Barreto de Souza
     Mestre Querido de Deus 
    18?? - 194?

    O ABC

    18?? - Nasceu.

    1936 - Jornal O Imparcial, 12 de março: Samuel Querido de Deus desafiou Bimba. Diário da Bahia, 13 de março: «O título máximo da capoeiragem bahiana - Bimba refuta as allegações de Samuel de Souza [..].»

    1937 - Aparece como um informante de capoeira de Angola no livro Negros Bantus de Edison Carneiro (foto abaixo). Em 11 de janeiro em Estado da Bahia sobre o II Congresso Afro-Brasileiro: «Dia 14 [de janeiro] - Exibição de capoeira de Angola, sob a direcção de Samuel Querido de Deus [..]». Leia mais!. Também faz parte do livro de Jorge Amado Capitães de Areia.

    1938 - No dia 18 de setembro (domingo) foi fotografado numa roda de capoeira Angola em Itapagipe por Ruth Landes (as fotos e o trecho do livro de Landes abaixo).

    1945 - Jorge Amado fala sobre ele em 1944 no livro Bahia de Todos os Santos (leia abaixo).

    194? - Faleceu (Em O Cruzeiro de 10/jan/1948 Juvenal fala sobre ele no passado).

    1969 - Paulo Tavares em Criaturas de Jorge Amado dá o nome completo dele: Samuel Francisco Barreto de Souza. Morava no seu próprio barco no Porto da Bahia. Era amigo dos Capitães de Areia, e amante de Clara.

    Identificação de Querido de Deus

    Foto de Carneiro, 1937: descalço, chapéu de fêltro, calças de barra dobrada

    Landes, 1938: «alto, mulato, de meia idade, musculoso, pescador de profissão [..] descalço, usava camisa-de-meia listada [..] de chapéu de fêltro» [calças de barra dobrada]

    Amado, 1944: «fios de cabelo branco [..] mulato [..] sangue indígena ou com traços de italiano no rosto anguloso [..] mais de sessenta anos»

    M Waldemar, 1989: «Samuel Querido de Deus era bom mas era sopeiro também. Só de jogo. Ficava esperando você pular pra ele dar uma cabeçada. Quando você queria forrar ele não queria mais jogar. Era crocodilo.»

    Galeria de fotos

    As fotos 2 e 3 abaixo feitas por Ruth Landes no dia 18 de setembro de 1938 em Itapagipe, Salvador, fazem parte do acervo da Instituto Smithsonian nos EUA*. Landes escreve em seu livro A Cidade das Mulheres (1947), que participou numa festa em Cabaceiras da Ponte em Itapagipe (veja o mapa abaixo!) e continua descrevendo uma roda de capoeira que assistiu lá:

    «Chegáramos ao lugar onde os homens se prepraravam para a capoeira. Os espectadores se apinhavam à volta de um largo círculo e não havia nem mulher nem sacerdote entre êles. Num ponto do interior do círculo estavam três negros altos, cada qual segurando um berimbau, com uma das extremidades apoiada no chão. Logos surgiram outros instrumentistas - um com um chocalho, outro com um pandeiro. Edison e os outros me ajudaram a chegar à frente e ficamos contentes por mudar de assunto.

    Dois capoeiras estavam agachados diante dos músicos. Um era o campeão Querido-de-Deus, cujo nome de batismo era Samuel. Era alto, mulato, de meia idade, musculoso, pescador de profissão. O seu adversário era Onça Preta, mais môço [de 29 anos, nascido em 1909 - velhosmestres.com], mais baixo, mais gordo. Estavam ambos descalços, usavam camisas-de-meia listadas, um de brancas, outro de calças escuras, um de chapéu de fêltro, outro com um boné que depois trocou por uma palhêta.»

    Então nas duas fotos vemos jogando dois homens. M Querido de Deus é supostamente aquele, que usa "camisa-de-meia listada" e o outro não pode ser Onça Preta, porque não tem aquela camisa nem calças escuras nem é descalço. É provávelmente o terceiro capoeira, quem empurrou Onça Preta para trás para entrar no jogo.

    * Ruth Landes tem uma outra série de fotos de 23 de outubro 1938 mostrando uma roda de capoeira, porém não dá alguma descrição dessa roda em seu livro. E não tem sufiecente data no acervo de Instituto Smithsonian para dizer quem são esses capoeiras.

    • Samuel Querido de Deus defende-se, atacando com uma Cabeçada, o Rabo-de-Arraia, que lhe atira o estivador Ularé [Maré, Totonho de Maré? com cerca de 43 anos de idade - velhosmestres.com]
      Edison Carneiro, Negros Bantus, 1937

    • ? e M Samuel Querido de Deus?
      Itapagipe, Salvador
      18 de setembro 1938
      Foto de Ruth Landes
      Acervo de Instituto Smithsonian

    • Verso: 1. Itapagipe, Cabaceira de Ponte. Sun. Sept. 18. Capoeira: one [triangle] on head kicking heels in other's fc.
      Itapagipe, Salvador
      18 de setembro 1938
      Foto de Ruth Landes
      Acervo de Instituto Smithsonian


    • M Samuel Querido de Deus? e ?
      Itapagipe, Salvador
      18 de setembro 1938
      Foto de Ruth Landes
      Acervo de Instituto Smithsonian


    • Verso: 2. Capoeira somersaulting in other's fc.
      Itapagipe, Salvador
      18 de setembro 1938
      Foto de Ruth Landes
      Acervo de Instituto Smithsonian

    M Querido de Deus


    Cabaceiras da Ponte

    Cabaceiras da Ponte


    A Cidade das Mulheres
    Ruth Landes
    1947

    • página 1

      -

      Capítulo 10

      [Edison Carneiro:] [..] Os trabalhadores que moram no bairro de Itapajipe saem no terceiro domingo dêste mês [setembro 1938] para fazer sacrifícios pelo ano que vem. Vamos lá. Sacrificam perto do lugar chamado Cabeceiras da Ponte e fazem uma feira que dura dois dias e duas noites. Já estêve numa feira?

      [Ruth Landes:] - Não.

      - Ah-h-h! Aí está. - Demonstrou o seu contentamento fazendo estalar os dedos. - Ótimo! Há canto, música e competições de samba. Depois, o jôgo da capoeira. Conhece capoeira?

      - Não.

      - Está visto que não. É outra coisa que a polícia tenta proibir e, nesse caso, as mães estão de acôrdo. A capoeira é uma espécie de contenda que os escravos fugidos criaram. Assemelha-se ao jiu-jitsu e pode tornar-se muito perigosa. Soube que há uma academia no Rio que a ensina. Por aqui, tiraram-lhe o veneno, proibindo os golpes mais difíceis e violentos. E lutam com música!

      - Por que as sacerdotisas se opôem?

      - Bom, porque dizem que os homens da capoeira não acreditam em Deus. Tomam muita cachaça, são useiros e vezeiros em brigas, às vêzes são transgressores da lei - é um outro mundo. Pessoalmente penso que é porque os capoeiras são todos homens e não há lugar para mulheres entre êles.

      - E jogam capoeira na festa da mãe-d'água?

      - Jogam, na feira, não na cerimônia. De muitas léguas ao redor vem gente para a feira; todos os chefes dos vários templos, ainda que se odeiem mùtuamente; todos os melhores dançarinos e dançarinas; os melhores intstrumentistas; as melhores cozinheiras! Lá é que você provará a verdadeira comida africana. Armam pequenas tendas para cozinhar e servir a comida - e vendem outras coisas também. Cada tenda foi benzida por um padre, imagine só, e tem nome e ostenta a sua lina bandeirola particular! Eu lhe digo, essa gente não dorme enquanto não acaba a feira. A excitação não o permite.

    • +

      página 2

      Capítulo 11

      FOMOS, POIS, a Itapajipe naquele domingo [18 de setembro]. Edison contratou um saveiro com o seu remador e ficamos parados na enseada esperando que começasse alguma cerimônia. [..] Despedimos o bote e saltamos em terra.

    • +

      página 3

      [..] - Olá, Manuel! Olá, flor! Que há de nôvo? - respondeu Edison, e me apresentou o homem. - Êste é Pai Manuel, um ótimo sujeito! Ouça, Manuel. Onde podemos encontrar alguma coisa boa? Candomblé, não. Capoeira? Há séculos que não sinto o cheiro de suor e de cachaça. Naturalmente, você é crente demais para se aproximar dêles. Mas dê-nos algumas indicações. Deve ter ouvido qualquer coisa a respeito, hein, flor? - E bateu com força no musculoso ombro esquerdo do mulato.

    • +

      página 4

      - Dizem que Ouerido-de-Deus luta hoje. Vi um grupo levando berimbaus nessa direção. - Manuel apontou para a esquerda. - Com êste calor, é uma boa caminhada - advertiu, mexendo com os olhos e dando estalos com os dedos.

      - E daí? Somos homens e a môça é americana - isso quer dizer valente! Além disso, somos gente môça e não um "santo" velho como você, hein, seu Manuel?

      - Ótimo. Mas não esqueça, os deuses baixam hoje no templo de Mãe Cotinha... Adeus.

      E o sacerdote seguiu o seu caminho.

      - Então êle não quer assistir a capoeira? - perguntei. - É um homem pacífico demais?

      - Qual nada! - os outros protestaram, rindo.

      - Mas é verdade - ajuntou Edison - que os capoeiras não se importam com o candomblé. Talvez gostem de mais algazarra do que encontram no templo e é certo que a maioria dos homens pouco pode fazer no meio de tantas mulheres em transe. Há tão grande tensão entre êles que você os julgaria inimigos. Talvez o tenham sido, na África. Talvez ainda continuem uma antiga disputa entre o candomblé iorubá da costa ocidental e a capoeira de Angola do sul.

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      página 5

      Chegáramos ao lugar onde os homens se prepraravam para a capoeira. Os espectadores se apinhavam à volta de um largo círculo e não havia nem mulher nem sacerdote entre êles. Num ponto do interior do círculo estavam três negros altos, cada qual segurando um berimbau, com uma das extremidades apoiada no chão. Logos surgiram outros instrumentistas - um com um chocalho, outro com um pandeiro. Edison e os outros me ajudaram a chegar à frente e ficamos contentes por mudar de assunto.

      Dois capoeiras estavam agachados diante dos músicos. Um era o campeão Querido-de-Deus, cujo nome de batismo era Samuel. Era alto, mulato, de meia idade, musculoso, pescador de profissão. O seu adversário era Onça Preta, mais môço, mais baixo, mais gordo. Estavam ambos descalços, usavam camisas-de-meia listadas, um de brancas, outro de calças escuras, um de chapéu de fêltro, outro com um boné que depois trocou por uma palhêta. Agachados, de chapéu e descalços, tinham um dos braços apoiado nas coxas e olhavam diretamente para a frente, descansando. Eram obrigados a guardar silêncio e a obrigação estendia-se à assistência.

      A orquestra deu início à diversão, numa desafinada invocação: e êsse fundo musical monótono, também, era essencial à ocasião. Era uma espécie de lamentosa tessitura anasalada, dentro da qual os homens realizavam maravilhas acrobáticas, sempre dentre da batida correta, enquanto os instrumentistas cantavam versos zombeteiros:

      Tava no pé da Cruz
      fazendo a minh'oração,
      quando chega Catarino,
      feito a pintura do Cão.
      Ê ê, Aruandê!
      Iaiá, pelo vamos embora,
      iaiá, pelo mar afora!
      Ê faca de ponta,
      iaiá, é de furá.
      Iaiá, joga pra cá,
      iaiá, joga pra lá.
      Ê ê viva meu mestre,

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      página 6

      iaiá, que me ensinou,
      iaiô, a malandrage,
      iaiá, a capoeirage!
      Iaiá, vorta do mundo
      ioiô, que o meundo dá!*

      Era uma canção de desafio, esperança e resignação, com fragmentos de idéias de rebeldia. Não possuia um tema único, bem trabalhado, mas resumia um tipo de vida e de protesto. E fazia começar a luta.

      Querido-de-Deus balançava os quadris enquanto encarava o adversário, mostrando-lhe os dentes, e avaliava as suas possibilidades. A luta envolvia tôdas as partes do corpo, exceto as mãos, precaução exigida pela polícia para evitar danos. À medida que os movimentos se amoldavam à música, êles se movimentavam numa seqüência lenta, como de sonho, que mais parecia uma dança do que uma luta. Como o regulamento estipulava que os capoeiras não deviam machucar-se uns aos outros, os golpes tornavam-se posturas acrobáticas, de valor para o cómputo final, com nomes e classificação. Havia vários tipos de capoeira, com sutilezas na forma e na seqüência dos golpes e no modo de tocar os berimbaus.

      Querido era prodigiosamente ágil nos difíceis encontros formais com o adversário e sorria constantement, enquanto as canções rituais rolavam:

      Disseram à minha mulher
      que capoeira me vendeu.
      A mulher jurou pé firme
      como isso não se deu.

      E os berimbaus mudaram de toada mais uma vez:

      Era eu, era meu mano,
      era meu mano mais eu.
      Meu mano alugou uma casa...
      Nem êle pagava, nem eu.

      * As canções citadas de capoeira e de samba-de-roda constam do livro de Edison Carneiro, Negros Bantos, 1937.

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      página 7

      Impertinentemente, com movimentos bonitos, vagarosos e calculados, Querido de uma leva cabeçada, sem tirar o chapéu da cabeça, na bôca-do-estômago do adversário, derrubando-o, de modo que êle caiu de cabeça. Então a orquestra estrugiu triunfante:

      Zum-zum-zum,
      capoeira mata um!

      Tiririca é faca de cortá.
      Prepar'a barriga pr'apanhá!

      Silenciados os ecos de desafio, terminada a rodada, os dois homens andavam e corriam sem descanso em sentido contrário aos ponteiros do relógio, um atrás do outro, o campeão à frente com os braços levantados, Onça Preta segurando-lhe os pulsos por trás, enquanto a orquestra cantava e tocava, enfadonha:

      No tempo qu'eu tinha meu dinheiro,
      camarada me chamava parente;
      quando meu dinheiro se acabou,
      camarada me chamou valente.

      Aos poucos, repousados, o da frente girava para encarar o de trás e os dois se evitavam ao compasso das cantigas, sem jamais parar, balançando-se de um pé para o outro, à espera de golpes.

      Capoeira vai te batê...
      Camarada, bota sentido!

      advertiam os berimbaus. Os dois se defrontaram, Querido avançando, Onça Preta se esquivando, sempre no ritmo. Como Querido avançasse, curvando o busto e abaixando a cabeça para golpear a cintura do outro, Onça Preta inclinou-se para a frente, tentando evitá-lo. Na verdade apenas abriu uma brecha, por onde Querido entrou com a perna direita, mantendo a esquerda esticada rente ao chão para sustentá-lo. Onça Preta atirou frouxamente os braços para trás e caiu para a frente por cima da cabeça que ia atingi-lo, descreven-

    • +

      página 8

      do um arco perfeito. Rindo calmamente, como num elogio, os dois se levantaram, gingando em circulos, para relaxar os músculos, enquanto a orquestra aplaudia:

      Ê aquindèrreis!
      Ê Aruandê!
      Que vai fazê
      com capoeira?
      Êle é mandingueiro
      e sabe jogá...

      Empenharem-se novamente em luta e de nôvo Querido foi o atacante, quase agachado como numa dança russa, oscilando, os braços curvadors para a frente para equilibrar-se. Em vez de insistir na cabeçada como antes, inclinou-se de lado e, de repente, ergueu o corpo. Onça Preta se curvou para atacar, mas Querido pôs todo o pêso na perna direita e raspou a cabeça do adversário com a esquerda, fazendo-o cair mais uma vez esticado!

      Agora outro capoeira insistia em entrar na roda. Já o tentara antes, mas não lhe tinham dado atenção. Impaciente, empurrou Onça Preta não soubera ganhar. E Onça Preta, amuado, lhe cedeu o lugar.

      Querido, o héroi, enxugou o suor do rosto e das costas e tirou o chapéu da cabeça para refrescá-la. Durante todo o tempo os espectadores se mantiveram quietos, apenas mexendo os pés para alivar a posição e a excitação anterior. Daí a pouco os berimbaus choramingavam uma invocação para a nova rodada:

      Quem te ensinou essa mandinga?
      - Foi o nêgo de sinhá.
      O nêgo custou dinheiro,
      dinheiro custou ganhá.

      Cai, cai, Catarinha,
      sarta de má, vem vê Dalina

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      página 9

      Amanhã é dia santo,
      dia de Corpo-de-Deus,
      Quem tem roupa vai na missa,
      quem não tem faz como eu.

      Cai, cai, Catarina...

      Para mim aquela era uma exibição incongruente e maravilhosa, para os outros era maravilhosa e inteiramente absorvente. Para êles estava certa. Mas os versos me levaram a conjeturas acêrca de escravidão, rebeldia e escárnio e eu estava perplexa ante o estilo do espetáculo, que roubava à capoeira o seu aguilhão original. A polícia suprimira o aguilhão e os negros tinham convertido o remanescente numa fantástica e pungente dança. As canções teriam ainda significação para o povo? Lembrariam as lutas que as haviam inspirado ou apenas dramatizavam os homens negros, como o candomblé dramatizava as mulheres negras? As camadas de espectadores estavam imóveis, de rostos impassíveis.

      De nôvo o desafiante e o campeão começaram a correr com os joelhos dobrados, os braços pendendo molemente, Querido divertindo-se com pequenos e complicados movimentos dos pés. De repente, um rapaz pulou no centro da arena sacudindo uma vasilha com dinheiro. Acabava de correr o chapéu recolhendo contribuições para os lutadores; e a orquestra, que manda no espetáculo, decidira que, em vez de repartir o dinheiro, devia deixá-lo no chão para que um nôvo par tentasse apanhá-lo com a bôca, cada parceiro rechaçando o outro à moda da capoeira. O rapaz anunciou a decisão e colocou a vasilha no chão, enquanto os berimbaus zombavam:

      Brincá com capoeira?
      Êle é bicho farso...

      E Querido ganhou! Mas, com o brio de um campeão, virou a vasilha no chão para começar a luta de nôvo:

      Ora, pode vadiá!

    • +

      página 10

      Desta vez o recém-vindo ganhou. A turma dissolveu-se, mal à vontade sob o sol escaldante das duas horas. Edison estava encantado com a exibição, tendo-a assistido como um connoisseur, e mais tarde se gabou de ter ajudado a organizar um nôvo clube de capoeira que faria exibições todos os domingos.

      Preparávamo-nos para deixar a feira.



    Bahia de Todos os Santos
    Jorge Amado
    1945

    • página 1

      -

      O CAPOEIRISTA

      Já começam os fios de cabelo branco na carapinha de Samuel Querido de Deus. Sua côr é indefinida. Mulato, com certeza. Mas mulato claro ou mulato escuro, bronzeado pelo sangue indígena ou com traços de italiano no rosto anguloso? Quem sabe? Os ventos do mar nas pescarias deram ao rosto do Querido de Deus essa côr que não é igual a nenhuma côr conhecida, nova para todos os pintores. Êle parte com seu barco para os mares do sul do Estado onde é farto de peixe. Quantos anos terá? É impossível saber nesse cais da Bahia, pois que

    • +

      página 2

      há muitos anos que o saveiro de Samuel atravessa o quebra-mar para voltar, dias depois, com peixe para a banca do Mercado Modêlo. Mas os velhos canoeiros poderão informar que mais de sessenta invernos já se passaram desde que Samuel nasceu. Pois sua cabeça já não tem fios brancos na carapinha que parece eternamente molhada de água do mar?

      Mais de sessenta anos. Com certeza. Porém, ainda assim, não há melhor jogador de capoeira, pelas festas de Nossa Senhora da Conceição da Praia, na primeira semana de dezembro, que o Querido de Deus. Que venha Juvenal, jovem de vinte anos [25 em 1944, tido nascido em 1919], que venha o mais célebre de todos, o mais ousado, o mais ágil, o mais técnico, que venha qualquer um, e Samuel, o Querido de Deus, mostra que ainda é o rei da capoeira da Bahia de Todos os Santos. Os demais são seus discípulos e ainda olham espantados quando êle se atira no rabo-de-arraia porque elegância assim nuna se viu... E já sua carapinha tem cabelos brancos...

      Existem muitas histórias a respeitos de Samuel Querido de Deus. Muitas histórias que são contadas no Mercado e no cais. Americanos do norte já vieram para vê-lo lutar. E pagaram muito caro por uma exibição do velho lutador.

      Certa vez seu amigo escritor foi procurá-lo. Dois cinematografistas queriam filmar uma luta de capoeira. Samuel chegara da pescaria, dez dias no mar e trazia ainda nor olhos um resto de azul e no rosto um resto de vento sul. Prontificou-se. Fomos em busca de Juvenal. E, com as máguinas de som e de filmagem, dirigimos-nos todos para a Feira de Água dos Meninos. A luta começou e foi soberba. Os cinematografistas rodavam suas máquinas. Quando tudo terminou, Juvenal estendido na areia, Samuel sorrindo, o mais velho dos operadores perguntou quanto era. Samuel disse uma soma absurda na sua língua atrapalhada. Fôra quanto os americanos haviam pago para vê-lo lutar. O escritor explicou então que aquêles eram cinematografistas brasileiros, gente pobre. Samuel Querido de Deus abriu os dentes num sorriso compreensivo. Disse que não era nada e convidou todo mundo para comer sarapatel no botequim em frente.

    • +

      página 3

      Podeis vê-lo de quando em quando no cais. De volta de uma pescaria com seu saveiro. Mas com certeza o vereis na festa da Conceição da Feira derrotando os capoeiristas, pois êle é o maior de todos. Seu nome é Samuel Querido de Deus.*

      * Êsse perfil do Querido de Deus foi escrito em 1944, quando êle ainda vivia.


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